- Abra a boca para o papai, meu amor.

.....

Estou vomitando bile dentro do balde, o cheiro do quarto é insuportável, tantos cheiros diferentes misturados com o do meu vômito. Vômito de novo e choro, e rezo, peço a Deus para que eu morra. Seria pedir demais que algum desses homens nojentos me matasse?! Eu me odeio por estar aqui, por ser mansa e aceitar, talvez se eu tivesse coragem de lutar eles me matassem de uma vez. Não vou sair daqui nunca, não tem saída.
Limpo minhas lágrimas e sento ao lado do balde cheirando a azedo, respiro fundo para me acalmar, toda noite é igual, toda noite me odeio e sei que irei me odiar para o resto da vida, sei que mesmo que eu consiga sair daqui um dia … serei apenas uma sombra. Mas minto para mim mesma que irei sorrir, cantar e ser feliz.
Mas te digo, é impossível. Estou morta.
Escuto passos no corredor e tento ficar calada, são duas pessoas, posso escutar os gritos se aproximando e o choro baixo. Fico o mais calada que posso. A porta ao lado abre, um corpo é arremessado no chão e a porta bate fazendo o andar todo tremer.
Batidas na porta ao lado e gritos desesperados. Já vi tudo isso antes, não vai adiantar.
Arrasto com cuidado a pequena cômoda que tenho, lutando para não fazer barulho. Logo encontro o pedaço pequeno de madeira encaixado em um buraco de 5cm por 5cm. Retiro o pedaço e espio o outro lado, tudo está escuro.

- Ei,  garota? Pare de bater na porta, não vai adiantar nada.

- Quem é? - ela responde em inglês e eu agradeço por pelo menos isso
Sou sua vizinha, se é que podemos chamar assim. - Você pode me ajudar?

- Não. - sou sincera - está muito machucada?

- Tudo dói.

- Tenho um remédio escondido, vou dividir com você. Mas não conte a ninguém.  - abro a gaveta pequena e entulhada de papel velho e encontro os comprimidos escondidos - chega mais perto.

Pelo buraco vejo a garota se arrastar até a parede, seus dedos estão vermelhos e machucados, conheço cada corte daquele por que já os tive nos meus próprios dedos. É de arranhar e bater contra a madeira só para descobrir que não tem para onde ir, ou quem te ajude.
Fico em silêncio enquanto ela se arrasta até qualquer lugar para tomar o comprimido.

- Acende a luz. - ela me obedece e acende, ela é pequena como eu e muito nova, talvez uns 16 anos - como veio parar aqui?

- Internet.

- O que?  - pergunto em dúvida.

- Conheci um rapaz na internet, bem, ele não era o rapaz que me mandava fotos, era um perfil falso, mas adivinha só descobri quando fui enfiada dentro de um carro … não consegui escapar. E você?

- Estava voltando da escola e um rapaz me abordou, era jovem, quase da minha idade então não senti medo quando ele me pediu para ajudar porque tinha atropelado um cachorro e precisava de ajuda. Obviamente o cachorro não existia e eu acordei em um lugar estranho e nunca mais sai de lá.

- Acordou aqui?

- Não, estou muito longe de casa. De onde você é?

- Alabama. E você?

- Flórida. - respondo e as lágrimas voltar a cair por meu rosto, não as seco - sinto tanta falta do Sol.

- Podemos fugir.

- Não seja boba. Ninguém foge daqui. - falo mais para mim mesma que para ela - a garota que ocupava o seu quarto, antes, tentou. - ela soluça e eu continuo - mais ou menos dois meses atrás eles nos tiraram pra fora para um banho de sol, um dos poucos do ano, e ela correu …Bem, vou apenas te adiantar que não acabou bem.

- O que aconteceu? - não adianta mentir, então continuei.

- Bem, ela estava fraca porque ficava dias sem comer, eles a pegaram arrastaram de volta para cá, nos colocaram todas na sala lá embaixo, bateram nela e depois deram um tiro no meio dos olhos dela, bem aqui - toco entre meus olhos - vimos ela agonizar e morrer bem ali no carpete da sala.

- Meu Deus. Não quero morrer aqui, quero ir pra minha casa. - ela chora e eu a acompanho, porque desejo a mesma coisa - deve ter um jeito.

- Fique viva e quem sabe um dia a gente consiga sair daqui.  - ela fica em silêncio - você deve ser a Layla.

- Meu nome é Joy.

- Mas está no quarto Layla, todas as garotas que ficam aí são chamadas assim. Só posso te ajudar falando o seguinte, não lute com os clientes, só é pior para você mesma, dói mais, machuca mais. Aceite os presentes que eles dão, isso economiza de você estar sempre devendo a eles - digo me referindo aos homens que nos tem como mercadoria - não que você vá receber qualquer dinheiro ou que um dia sua dívida vá ficar zerada e sairá livre, isso não existe, mas quanto mais você consome mais eles te perturbam e ficam em cima. Tente ser obediente, é difícil, mas tudo que ganhei com rebeldia foi 3 costelas quebradas, um corte na cabeça com 4 dias que fiquei apagada, um pulso quebrado que nunca para de doer e uma cicatriz na mão que levou meses para sarar porque toda vez que passava por mim o capanga batia no mesmo lugar. Acredite, eu já lutei pra fugir, hoje eu sobrevivo para quem sabe ser encontrada viva.

- O que eles fazem com … os corpos?

- Enfiam em um barril de cerveja e jogam no rio que passa lá atrás.

- Eles são encontrados? - ela sussurra.

- Não sei, não temos como saber.

- Isso é um pesadelo. - sinto quando ela começa a se balançar contra a parede na qual estou encostada - Quero a minha mãe.

- Eu também.

Enquanto Layla chora eu explico mais algumas coisas, coisas que eu gostaria que tivessem me explicado quando cheguei aqui machucada, faminta e tremendo de frio. Gostaria que tivessem me falado para comer tudo que dão, porque às vezes eles nos colocam de castigo sem comida por alguns dias e isso é independente de quem fez algo para deixá-los irritados. Tente se manter limpa e o mais bonita possível, porque se estiver muito relaxada não vale mais nada e é descartada, não encare, não resmunguei, não fale, seja uma sombra, um objeto, e talvez apanhe pouco. Eles não costumam bater muito porque mercadoria estragada perde o valor, mas batem sim. Os homens sabem que devem se prevenir, então exija, ninguém quer pegar uma doença, nem mesmo eles. Aceite as cobertas que "compramos", porque há os dias em que decidem que precisamos entrar na linha e então o aquecimento da casa é desligado e o frio é congelante.  São tantas coisas e em algum momento eu paro me perco nos pensamentos.
A única coisa que eu não digo, não é preciso, é que dói, machuca, é sujo, pervertido, e nada disso muda.
Por fim eu tampo o buraco, tiro minha roupa e deito na cama, me cubro e tento dormir. Fecho os olhos e tento lembrar do rosto dos meus pais, dos meus irmãos, dos amigos que deixei pra trás. Tento reviver a sensação do Sol na pele, da comida caseira, da minha cama macia.
Será que minha família ainda me procura ou já enterrou um caixão vazio em minha homenagem? Será que meu quarto ainda está montado ou todas as minhas coisas foram doadas e o lugar virou um túmulo vazio assim como meu caixão?
Eu não sei, mas quero descobrir. Quero tanto sair daqui e descobrir tudo isso. Quero me sentir segura, feliz, protegida, não quero mais sentir medo e vazio, minha alma está tão vazia que mesmo lembrando de todas as coisas boas não consigo sorrir.
Então eu choro até dormir, como todas as noites.



Stolen Life (Repost)Where stories live. Discover now