Capítulo 4: Sylvia

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— E ai, vadia, vai demorar muito isso? Necessito de um sorvete agora.

Virginia abaixou a cabeça ao lado do carro e seus cabelos loiros e curtos caíram em cascata ao redor do rosto. Era linda, e seria uma garota perfeita se não fosse tão patricinha e intragável por causa disso. A única pessoa que suportava Virginia era eu, e justamente porque eu era igualmente antipática, a minha maneira. Sem tanto ouro e esplendor. 

— Deixa só eu calibrar isso aqui, espera. — Girei com mais força a chave e senti quando a peça enroscou de vez.

Puxei o chão com os pés e o carrinho onde estava deitada saiu rolando livremente até me tirar de debaixo do carro.

A luz da oficina me cegou por um instante. O suficiente para me lembrar do que Lando sempre dizia sobre equipamentos de proteção por ali, e quase nunca lembrava de usar nada. A não ser as botas, porque já chegaram a derrubar uma caixa enorme de ferramentas no meu pé e não foi nada bonito quando quase quebrei o nariz do mecânico que a derrubou. Até hoje Lando dizia não acreditar que havia sido por puro reflexo. 

Levantei do chão e fui até a pia, lavando a graxa escura dos meus braços e rosto. Mesmo limpa minha pele parecia ter manchas eternas, como meu cabelo sempre parecia oleoso. Não adiantava nada lavar todos os dias, já que eu voltava a entrar embaixo de carros e sujava tudo novamente.  Ainda assim insistia e lavava. Gostava de dormir imaginando que ele cheirava a shampoo, o que raramente acontecia porque o odor da oficina impregnava em mim. Eu só cheirava a óleo.

Baixei o macacão até a cintura, ficando apenas com o top de ginástica por baixo. Andei até Virginia, resplandecente em um vestido azul rodado e pérolas nas orelhas. A bolsa de marca pesando nos ombros e um sapato que custou mais do que o meu guarda-roupa inteiro nos pés claros e bem cuidados. Ela não tinha motivos para se montar toda e andar em Novo Airão, mas ela argumentava que era uma questão de princípios. Que se tinha, porque não usar? Quem era eu para discordar.

Eu sempre dizia que beleza estava intimamente atrelado a dinheiro. Não que só pessoas ricas eram belas, mas elas tinham mais condições de ajeitar as coisas que nasciam erradas.

Se a pele não era boa, existiam tratamentos caros para cuidar. Se o cabelo tinham pontas duplas e era sem vida, dinheiro dava um jeito nisso. Se o nariz era um pouco avantajado, uma cirurgia resolveria. Gente com grana só era feio por opção.

Virginia era dessas que aproveitava com louvor cada centavo que tinha. Só usava roupas e sapatos de grife, vivia no cabeleireiro e cheirava a baunilha qualquer hora da dia. A vaca tinha a ousadia de acordar bela e esplendorosa, enquanto eu continuava cheirar a graxa e parecia que tinha brigado com um gato durante a noite, pela bagunça do meu cabelo de manhã.

Ainda hoje não sabia como aquela garota tinha se tornado minha amiga.

Um ano atrás entrou ali com o pai para trocar o pneu do carro dele. Viu-me trabalhando em separar e limpar algumas ferramentas da oficina e, em silêncio, me ajudou a guardar enquanto o pneu era trocado. Foi o começo de uma amizade que hoje em dia era a coisa mais profunda que já tinha tido com outro ser humano na vida, depois de Lando, e eu prezava muito quem éramos juntas. Ela respeitava meu silêncio raivoso, e eu entendia que ela era uma patricinha irritante.

Encostei em um carro ao seu lado e puxei o cigarro do maço que estava dando sopa em sua bolsa chique, acendendo com o outro acesso na mão dela e tragando com vontade.

— Ei — Ela falou depois de soltar uma baforada propositalmente ruidosa. — Aquele carro é do Artie? — Ela apontou para o Opala prateado. — Atticus Teodosio?

Acenei fitando o carro cinza e perfeito.  Uma versão moderna do que poderia ser o carro dos T-Birds, em Grease, se Artie fosse mais corajoso para pintar labaredas em seu possante prateado.

Constelação de Gritos Mudos (Degustação)Where stories live. Discover now