Capítulo 2: Sylvia

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Carro era um dos meus fracos, principalmente os antigos. Por isso havia virado mecânica depois de dois anos fazendo um curso técnico de enfermagem que acabou se provando uma frustração. Eu gostava era de estar embaixo de carros, consertando motores e sujando a mão de graxa. Ver pessoas agonizando não era para mim. Só fazia minha ansiedade aumentar e fui recomendada pela psiquiatra do posto de saúde a evitar situações de tensão. Então mandei o curso à merda, e fiquei com meus carros, que eram honrosos em suas agonias e quando morriam, era em silêncio absoluto.

Com Lando, me chefe, eu me dava bem. Ele gritava quando eu fazia algo de errado ou deixava de fazer o que ele queria, e eu gritava de volta porque não aceitava ninguém gritando comigo. Acabávamos rindo e comendo peixe frito. Ele era a única família que eu tinha hoje em dia.

Dei a partida no Corcel e dirigi pela estrada por uns bons minutos até chegar em um trecho mais conhecido. O conjunto de apartamentos que o gostosão da cama morava era fora do centro da cidade. Um lugar aconchegante e pequeno que os madeireiros construíram para os funcionários morarem mais próximo ao serviço. Alguns viviam ali em caráter de aluguel, outros compraram e dividiram em prestações para o resto da vida. As taxas eram piores do que as dos programas habitacionais do governo, mas para eles estava bom. Quando não se tem muito, não se cobra o suficiente.

Liguei o som do carro e acendi um cigarro. Não haviam guardas naquele trecho da cidade para me multar por fumar enquanto dirigia. Sabia que era perigoso, mas pela manhã era o momento que meu corpo mais pedia por uma tragada, e eu dificilmente negava isso a ele. Preferia fumar em casa, quando acordava em minha cama, mas esses eram momentos raros. Acontecia de dormir mais em camas de desconhecidos do que na minha própria. Ou melhor, de estar em camas de desconhecidos, porque dormir era o que menos fazíamos.

Avistei o carro prateado mais a frente por causa do reflexo do sol no capô aberto. Parado no encostamento, parecia uma visão do paraíso. Era um Opala. O mais bonito e conservado que já havia visto por aquelas bandas.

Quando cheguei mais perto, diminui a velocidade e estreitei os olhos para prestar atenção no homem debruçado sobre o motor. De costas não consegui reconhecer, mas sabia que era um dos meninos do Tenreiro Aranha, o colégio interno de garotos, só pela cor da farda: um marrom terroso com tons vermelhos.

Pensei em acelerar. Mesmo que fosse um carro bonito e quisesse ver mais de perto, não gostava muito dos garotos daquela escola, ainda que conhecesse todos e tivesse dormido com quase isso. Eram bons de cama, a juventude lhes garantia esse benefício, mas ricos demais e isso lhes conferia uma certa liberdade da qual eu não gostava. A última festa que participei com eles foi o momento em que me senti mais longe de mim mesma desde que era menina, e eu detestei a sensação. Por isso queria distância.

Quando estava prestes a pisar no acelerador para ir embora, o garoto virou para frente e eu ergui uma sobrancelha.

Não conhecia aquele menino.

Não conhecia um cara que dirigia um Opala prateado e que era bonito demais para ser ignorado? Como isso era possível?

Fiquei pensando se ele não era da equipe dos homossexuais, mas descartei a possibilidade quando lembrei que mesmo os homossexuais, celibatários e namorados da Tenreiro iam para o Boliche nos finais de semana. Passava dos quinze anos eles podiam sair da zona do colégio e participar das atividades na cidade com supervisão dos alunos mais velhos. Portanto isso não era desculpa para não conhecê-lo.

Podia ser um aluno novo. É, isso explicava a questão.

Minha curiosidade falou alto quando parei ao lado do carro dele e coloquei a cabeça para fora da janela, jogando o resto do cigarro bem longe.

Constelação de Gritos Mudos (Degustação)Where stories live. Discover now