Acusação

8 0 0
                                    

Quase tão subitamente quanto a Coisa acordou, Cris levantou as sobrancelhas e suspendeu seu rosto por elas.

- Como eu saio daqui? - Indagou, não com o medo que a tomava há poucos segundos, mas com entusiasmo. Teve uma brilhante ideia.

As lágrimas que caíam se espantaram e regressaram ao olho que a encarava profundamente. Ao tomar fôlego, Aquilo respondeu:

- É simples. Diga algo egoísta como: eu consegui sozinha, ele também irá, ou: de que me adiantaria ajudá-lo? Isso abrirá algum caminho e você poderá sair. Se tiver sorte, sua consciência não lhe acusará pelo resto da vida por ter-me deixado aqui.

Agora Cristina era capaz de olhá-lo sem tremer, entendeu que ele nunca foi uma criatura abominável que queria dominá-la. Era alguém. E esse alguém estava com as esperanças no limite, a ponto de perder sua identidade no mar da ilusão que intitulou "conforto". Deixá-lo com mentiras não lhe era uma alternativa.

- Você pode ir comigo! Podemos fugir daqui e encontrarmos uma perspectiva diferente do outro lado!

Ele olhou pra cima com um ar de riso desesperado. Seu olhar pairou sobre o chão em busca de palavras que fizessem entender o que se passava em sua mente. Quando voltou a fitar a mulher, rebateu:

- Acha que eu nunca tentei fazer isso, Cristina? - Ambos estremeceram. - Acha que nunca tentei mudar o exterior para sentir-me confortável ou, simplesmente, aceito? - Ela não sabia o que dizer. Lhe afligia a ideia de machucar ainda mais Aquele. - A questão é que não adianta! Este palácio moldável e confinador estaria sempre em mim, independente do ambiente externo! - Propôs um exemplo: - Em que eu estou apoiado?! - Apontou para uma pilastra branca que fundia-se numa ilusão de ótica com o resto do quarto; aquilo desapareceu quase magicamente e reapareceu. A explicação veio em seguida: - Eu consigo moldar este cômodo do jeito que me satisfaça, porém nunca serei livre com limites por todos os lados! - E novamente a tristeza se manifestou pelas gotículas que escorriam de seu olho. - A mudança não vai surtir efeito se não ocorrer dentro de mim! Se mudar o local, eu o farei um cárcere de novo!

Com um suspiro finalizou sua fala.

Cristina não podia ignorá-lo, não seria capaz de o rejeitar naquela situação. Ainda que não expusesse muito além das palavras e lágrimas aflitas, era nítido que estava perdido ali, indo e vindo em busca da realização interna que preenchesse e transformasse seu coração. Aquele quarto poderia ser demolido com alguma inovação, mas a reconstrução seria ainda pior que antes.

Ah! Quantas pessoas ela já viu assim? Dezenas, centenas! Gente que passa e volta, e mente, e finge, e diz que está tudo bem porque realmente sugere isso; porém questiona, retrai, esconde; o quarto vazio é o melhor lugar para ser sincero.

Os juízes desta vida têm sido quem deveria ajudar, Cris julgou ser essa a realidade; ficou chateada ao relembrar que muitos cativos que conhecia permaneciam assim; os quartos ainda estavam trancados e as mentes vazias, a procura da mais falada do século:

- Felicidade - Disse como se pra si mesma. - É o que queres?

Aquele riu tristemente; ao que aparenta, todas as soluções propostas já haviam sido vivenciadas e comprovadas de modo empírico pela ineficácia.

- Isso é algo muito genérico, Cris. Não é uma causa, sim uma consequência - Afirmou. - Ora, por que fico feliz? Porque aparece algum ser aqui e me estimula a querer fugir cada vez mais. Por que me entristeço? Porque eles vão embora com uma experiência completa e eu perco cada vez mais essa expectativa de conseguir algum dia correr em liberdade.

Cris pôs-se ao lado da coisa, com o joelho debaixo do queixo e os braços a envolver as canelas. Suspirou frustrada. Nem isso conseguia fazer; perdeu realmente a prática de como fortificar a alegria e paz de alguém.

Talvez ela nunca tenha feito isso de verdade; quem sabe, o que viveu foi apenas uma demonstração de problemas superficiais e egocêntricos, que a elevavam quando os vencia, não pelo poder de transformação que seu espírito se dispunha a viver, mas pelo desejo de ocupar o lugar mais alto de seu coração?

Sim! Aquele era um lindo lugar! Gigante, luxuoso, digno de um Deus! Cristina colocou ali o seu deus. Não o Jesus, mas as contas, o marido, a família problemática; quem servia não era mais o seu Salvador, para quem canta nos domingos; seu rei virou aquilo que ela deu prioridade pelo resto da semana. Não era muito diferente de Aquele, ambos tinham fontes de alegrias e ocupação instáveis.

E pensar que, em algum momento, essa jovem soube o que é ter paz; soube o que é amar de verdade porque um dia ela entendeu que foi amada. Mas, e agora? Custou a perceber que o que estava vivendo não era nada além de um resquício do que teve ao ser achada por seu Jesus. Ah... Pensar nesse nome era como lembrar de um melhor amigo esquecido, deixado para que os outros eventos circunvizinhos pudessem sufocar a paz e confiança que o relacionamento espiritual lhe promovia. Sua insuficiência disfarçou-se de satisfação e plantou mentira, inclusive a de que estava no topo do mundo e reinando sem Seu Deus; mesmo indo aos cultos e vivendo no prejuízo, essa verdade estava em seu coração e por ele não passava o pensamento de aceitar que nada estava certo e se render ao Pai ou pensar que existe paz neste mundo.

Então começou a chorar. Fez sua vida num solo instável e o pensamento positivo ficou para trás como mais uma tentativa de se animar. A colheita daquela plantação rendia muito tempo; se apodrecesse, jogar fora ainda não seria a resolução; conservá-lo tirava-lhe as energias; gastava-se mais para mantê-lo que para "subir seus níveis pessoais". Cris, naquele quartinho, com um ser sentimental ao seu lado, viu-se estagnada.

Começou a reparar em seu estilo de vida alguns minutos após Aquele meter a cabeça entre as mãos e urrar baixinho numa tentativa de fugir de seus espinhos reluzentes. Cada segundo ele ficava mais embaçado por saber que de nada adiantaria as tristezas mostradas. Era um mero tratamento aliviador de sintomas porém não livrava do mal.

- Já que é assim - respirou entre os soluços. - Vou me encher das drogas que me matam e entorpecem... De novo - Findou baixinho.

Ambos choravam. Em alguns momentos urravam alto para tentar tirar da caixa torácica o que sentiam, mas de nada adiantava; ao inspirar, o vazio que expeliam em lágrimas retornava ao pulmão e passavam por todo o corpo como um líquido espesso de uma vacina maldosa. Era notável cada movimento doloroso daquele terrível sofrimento; era agoniante, sufocante, maltratava sem dó as almas perdidas sem felicidade ou direção.

Alguns espinhos vermelhos surgiram e, assim como com Aquele, prenderam Cristina; quanto mais chorava, quanto mais perceberam, quanto mais mostravam, mais eles perfuravam a pele causando dores terríveis, porém não derramavam um pingo de sangue; estava presa.

Finalmente, Cris recordou-se o que é ser cativa; recordou-se dos parentes que estavam na mesma situação, dos amigos que se mataram e lhe contaram antes de engolir mais de dez comprimidos de uma só vez, lembrou que suas condições não eram diferentes das deles. Ah! Apenas mostre-lhe alguma salvação, algum caminho, algo! Mostre alguém que faça esta voz parar de condenar nossas mentes.

A almaWhere stories live. Discover now