O Descarnado de Mil Faces: Egito.

Começar do início
                                    

Semanas antes, entediado pela rotina estafante de ter tudo nas mãos, o jovem faraó solicitou ao sacerdote de Tot, seu deus protetor, que lhe indicasse formas de pensar mais a frente, de ocupar sua mente com conhecimentos menos comuns, coisas que o fizessem diferente da multidão independente de quem foram seus pais. O sacerdote, que arrancou seus próprios olhos em um ritual para o deus do conhecimento e marcou sua própria pele com brasa em homenagem a Tot, recomendou algumas ervas especiais plantadas no templo recentemente. O próprio deus havia indicado seu plantio e serviam para iluminação espiritual.

O imenso quarto, decorado com jóias e outros artefatos artísticos como murais e cerâmicas, estava tomado pela fumaça das ervas sendo queimadas. Tuthmoses se sentia estufado, mesmo que não comesse há dias, e seu espírito começava a desprender-se do corpo, em uma espécie de transe. Sentiu o toque gélido quando uma mão emergiu da escuridão formada pela fumaça espessa e o tocou. Era impossível que algum servo ousasse desafiar sua autoridade, portanto não deveria haver ninguém ali. Cerrando os olhos no esfumaçado ambientena tentativa de enxergar melhor, vislumbrou a silhueta de um homem, alto e magro. Aos poucos a fumaça começava a se dissipar, formando uma pequena esfera sobre o dedo indicador daquele homem surgido do nada, dedo este que apontava para o alto.

Tossindo muito, Tuthmoses caiu no chão do seu quarto, sentindo o peso do corpo desabar sobre si mesmo. O acesso violento e repentino, mesmo após a nuvem de fumaça haver deixado o ambiente, fez com que o tórax doesse, tamanho o esforço empreendido. O jovem faraó apoiava os dois braços e os joelhos no solo,  cuspia postas de sangue grosso e escurecido. Levantando a cabeça com dificuldade para ver se o homem ainda estava ali, percebeu que a misteriosa companhia permanecia no quarto, no lugar onde a estátua de metal escuro deveria estar, agora havia um homem de pele negra, cabelos escuros e escorridos, dotado de uma magreza capaz de chocar mentes mais sensíveis, parecia não haver carne sobre os ossos. Um arremedo de pele cobria como farrapo as protuberâncias ósseas daquele corpo disforme.

A esfera de fumaça que se formava na mão do descarnado assumia outra tonalidade, mudando do cinza enegrecido, para um vívido vermelho cor de sangue. O quarto estava imerso no mais profundo silêncio, porém do lado de fora, gritos aterradores eram proferidos por todos os serviçais que viviam no palácio e nos povoados próximos. Homens e mulheres, sem nenhum tipo de distinção entre eles, caiam em desespero no chão arenoso sentindo suas peles e músculos serem arrancados do corpo, causando uma dor em escala não compreendida por ninguém que não tenha passado por tal experiência. Alguns se cortavam até morte em desespero, outros bebiam veneno, também era possível encontrar aqueles que incendiassem o próprio corpo esperando que a dor passasse ou ao menos diminuísse.

"Tu desejas conhecimento e poder, mortal? Desejas partilhar comigo o que possuo?" inquiriu o homem negro, ao mesmo tempo em que oferecia a esfera avermelhada que agora possuía um aspecto vítreo. Do lado de fora apenas o silêncio, todos em um raio de quilômetros tombaram mortos em desespero ou se suicidaram em desespero ainda maior.

"Sim, eu desejo mais do que tudo!" respondeu o altivo faraó se recompondo e lutando contra sua fraqueza para ficar de pé. Seus membros tremiam e ao encarar o homem negro e de cabelos escorridos de frente sentia que seus olhos ardiam, não o tipo de ardência ao se olhar o sol, mas aquela que provém da chama. Em sua soberba, manteve o olhar fixo no homem que portava a esfera vítrea e avermelhada. O ato de lacrimejar sofreu a transformação nada sutil de água para sangue, que escorria dos olhos manchando o tecido branco trajado pelo faraó.

"Abra mão do que o constitui humano, aceite o dom que ofereço, corte as amarras que limitam sua visão, vislumbre a escuridão fria do universo e deixe que ela abrace sua alma." Sussurrou o homem negro como um céu sem estrelas passando para as mãos de Tuthmoses a esfera que gotejava sangue, de maneira similar aos olhos do faraó. De maneira involuntária, o jovem nobre se ajoelhou recebendo as esferas em suas mãos e agora evitando olhar para seu interlocutor para diminuir a dor que a hemorragia nos olhos infligia. "Abra sua mente."

Tuthmoses ingeriu a esfera com a voracidade de um animal faminto. A cada mordida sentia seu corpo mais leve, se sentia menos presente no mundo. De certo modo estava mais distante e a ligação entre seu corpo espiritual e sua matéria se tornava mais frágil a cada pedaço que engolia. O homem de pele negra apenas o observava de maneira impassível, sem expressão nenhuma na face magérrima, deixando que o jovem faraó experimentasse a tudo sem nenhum tipo de interrupção.

"Qual o gosto que sente ao devorar seu próprio povo?" perguntou o descarnado com sua voz suave. "Eu me sinto vivo" respondeu o faraó sujo de sangue, com uma expressão lunática em sua face. "O que preciso fazer agora?" perguntou Tuthmoses.

Seu corpo se estremeceu dos pés a cabeça, convulsões violentas onde bateu diversas vezes com seus membros e cabeça contra o chão. Gritou em diversas línguas que com toda certeza não conhecia, sentiu sua pele queimar, sua cabeça doer e se expandir quase rachando o crânio. Então se viu fora do seu corpo, subindo muito além dos céus e das nuvens, além de onde qualquer deus ou mortal possa ter ido, viu estrelas que fariam nosso sol parecer uma tocha, mundos de gelo e podridão onde criaturas moribundas se alimentavam de si próprias em um ciclo de flagelo e regeneração. Então, voltou seus olhos para seu próprio mundo. Uma pequena esfera azulada mal localizada em um universo habitado por criaturas mais antigas que a luz e a escuridão.

Vislumbrou guerras com armas feitas de metal que disparavam fogo e outros pedaços de metal, milhões de pessoas mal vestidas sendo devoradas por ratos, enquanto outras sofriam de pústulas negras por toda a pele, homens e mulheres de pele amarela famintos devorando insetos variados, tudo que regado a muito sangue, guerra, destruição e morte. Homens vestindo cruzes e entoando nome de um deus enquanto chacinavam outros que defendiam o mesmo deus com outro nome, o tal do deus único... Em um longo salto através das luzes brancas que em grande velocidade se transformaram em todas as cores possíveis viu macacos acendendo chamas, crescendo e esticando suas colunas, vestindo roupas e então viu a si mesmo sentado em seu trono, vazio, sem propósito. No fim de tudo, a escuridão negra envolvia o planeta, como tentáculos de um colossal animal marinho desconhecido e temido como demônio levando a pequena esfera azulada a uma era de trevas geladas onde todos aceitariam a morte como uma alternativa feliz.

O descarnado sorria, deixando seus dentes amarelos à mostra em suas bochechas carcomidas. Parecia aguardar que o homem se recompusesse e se levantasse, o que não aconteceu. Tuthmoses permaneceu deitado e babando como um resto de ser humano, uma casca vazia.

Do lado de fora do quarto o sacerdote de Tot caminhava por entre a profusão de cadáveres espalhados por todo o palácio. Olhava com desprezo para os mortos e evitava o quanto podia tocar neles. Abriu a porta dos aposentos reais e deparou-se com o descarnado sorridente. No entanto, seus olhos enxergavam uma bela mulher, morena, bem constituída e com o sorriso que não poderia ser definido por nenhuma outra palavra que não perfeito.

"Minha deusa, obrigado por me deixar servi-la". Disse o sacerdote em tom de reverência.

"Venha até mim, quero sentir seu toque". Respondeu o descarnado abrindo seus braços magérrimos.

O ex-servo de Tot se levantou e foi até o que via como uma bela mulher e a beijou carregado em luxúria e desejo. Tuthmoses sentia seu estômago querendo fugir por sua garganta vendo o homem que o iniciara no misticismo se atracar com um monte de pele e ossos macabros e retorcidos.

"Ele está pronto. Posso sentir." Disse o sacerdote ao terminar o beijo, onde deixou grande parte de sua alma e fluidos no corpo do descarnado. "Sinto a paz que só o sofrimento pode provocar, minha Deusa."

"Sim, está. Em dias ele era inchar até se desfazer gerando meus novos servos que irão espalhar minha palavra de escuridão, assim como você o tem feito por décadas. No final ele terá o que queria, será um Deus, será parte de mim, será parte do universo."

O sacerdote arrastou o corpo imóvel de Tuthmoses, que podia ver e sentir tudo a sua volta, mas não era capaz de expressar nenhuma reação e o posicionou sentado no trono repleto de joias. Era possível perceber movimentações por debaixo da pele do jovem, como algo a se mover de maneira intensa.

O conhecimento separa, e sempre separou, homens dos deuses, todavia o conhecimento é capaz de transformar um reles selvagem agressivo em um verdadeiro monstro. Tamanha a imensidão do universo e de todos os universos, separar o que vale ou não vale a pena conhecer por si só já é uma tarefa enlouquecedora. Vislumbrar por um instante as trevas exteriores pode trazer ruína a milhares de vidas. Tuthmoses queria o conhecimento e o obteve, queria ser um deus e conseguiu ser parte de um, ao custo de sua sanidade e é impossível mensurar do que mais.

O Descarnado de Mil FacesOnde as histórias ganham vida. Descobre agora