O Descarnado de Mil Faces: Egito.

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Gotas de chuva caiam gentis sobre a areia e sobre o imenso rio que por ali corria. Cerca de quinze homens, de variadas idades, trabalhavam em uma espécie de plantação. Nem mesmo a chuva intimidava o seu trabalho. Alguns metros adiante, coberto por uma tenda improvisada com o couro de algum animal, um homem vestindo trajes elegantes e adornos feitos de prata e rubi vigiava os que trabalhavam.

Uma criada estava ali tão somente para servi-lo de frutas comuns naquela época do ano. Outros criados o massageavam ou acariciavam seu cabelo. Todos possuíam peles morenas, marcadas pela exposição constante ao sol. Todos, exceto o que trajava roupas mais elegantes e era mimado por servos. Ele era mais branco, pálido até.

Na região pouco chovia e os locais consideravam aquele fenômeno algo de natureza divinal. Tinham métodos para prevê-la com seus calendários, mas não deixavam de sentir o caráter divino. Com um gesto da mão esquerda o homem ordenou que os criados parassem tudo que estavam fazendo. Não estavam plantando ou colhendo, estavam a cavar.

Tuthmoses detinha um imenso poder em suas mãos, era considerado um verdadeiro deus por aqueles que o seguiam. Era um regente presente e misericordioso e ainda que jovem, cuidava pessoalmente de muitos afazeres e garantira a paz contra diversas tribos inimigas. Era um deus que se importava com humanos. Mas o interesse era cada vez menor.

Os homens que escavavam a superfície do rio pararam ao comando de seu senhor e o olhavam sujos e molhados, aguardando novas ordens. O tempo que fazia era incomum, afinal era dia e o sol estava escondido. Espessas nuvens de chuva conferiam um aspecto lúgubre ao firmamento. Mais ao norte do rio, um grupo de crocodilos estava adormecido, com bocarras abertas, deixando que a chuva de água quente caísse sobre eles em gotas agora muito grossas. Os homens e os animais dividiam o rio e apenas alguns metros os separavam. Algo, porém mantinha os predadores longe dos humanos que escavavam.

O líder daqueles homens se levantou com toda autoridade que lhe era investida e todos se curvaram. Caminhou tocando o chão lamacento com seus pés delicados e finos. Alguns criados mais próximos dele tentaram fazer algo, mas foram impedidos. Ele queria sentir o chão, sentir o solo. No local parcialmente escavado próximo ao leito do rio de águas escuras e lamacentas havia uma estátua feita de um material negro como uma noite sem estrelas. Tuthmoses se abaixou, chocando a todos os seus criados presentes, chafurdou suas mãos na lama e retirou a estatueta, levantando-a acima da cabeça.

Entregou o ídolo de metal negro para um criado dentro de sua tenda com muito zelo e ordenou que o envolvesse no tecido real, uma espécie de seda muito rara. Olhou para os céus em um tom desafiador e disparou palavras impronunciáveis. Arrancou o ankh feito de prata e rubi que adornava seu pescoço e o atirou o mais distante que pôde rio acima. Era o símbolo da vida e ele estava abrindo mão disso e de toda a proteção que o objeto conferia.

Levantaram acampamento dali, desarmando a tenda e levando tudo de volta ao palácio. Os homens viram a mudança no olhar de seu senhor, perceberam a sua atitude altiva se tornar apática. Contudo, não poderiam dirigir-lhe a palavra se não fossem solicitados. A caminhada seguiu silenciosa até o palácio. A primeira ordem que o jovem faraó proferiu ao retornar foi que derrubassem as estátuas de pedra erguidas por seu antecessor. Elas homenageavam ao deus da sabedoria Tot. Em sua arrogância acreditava agora que seu povo não precisava de outros deuses que não ele. Tuthmoses seguiu o restante do caminho até seus aposentos sozinho, levando consigo a estátua retirada do rio. Fechou-se em local de repouso por dias, sem comer ou beber. Nenhum servo ousou aproximar-se.

Oculto em sua meditação, cercado por uma fumaça gerada por ervas plantadas em seu próprio quarto, Tuthmoses viajava por uma dimensão inacessível a homens ordinários. Desde muito jovem fora tratado com uma divindade em terra, um ser superior caminhando em meio aos mortais. Contudo, sabia em seu íntimo, que não encerrava em si nada de divino. Estava certo que apenas ocupava uma posição temporária, obtida por seu nascimento. Para sua inefável vaidade, não seria o suficiente ser tratado como um Deus, ele queria ser o próprio.

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