JOSUÉ

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Como criança batendo seus bracinhos contra a força do rio, o dia lutava com breu vertente

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Como criança batendo seus bracinhos contra a força do rio, o dia lutava com breu vertente. Os flocos brancos, costurados em vestes enlutadas, vencem com naturalidade. No oeste, o derrotado ausenta-se.

Na casa, distante da cidade e em vista disso cercada por árvores, a viva tela celeste pregava uma peça aos olhos de quem a via, mostrando-se mais ampla, a perder de vista, como se não bastasse ao céu, na sua oposição repetida entre o dia e a noite, ser a maior coisa da Terra e nem na Terra estar.

No mar contrário, as nuvens, como embarcações lentas e brancas, típicas da primavera, atracavam acima das cabeças, não deixando nem a menor delas, nem a mais pequenininha, sem ver. Dali pareciam aproximar-se mais do chão, inapropriado para a navegação, mas nem por isso deixava de ser interessante estar à beira do céu para participar do reencontro terrestre, e também, saber.

Enquanto as mãos do Josué traziam copos grandes de chá gelado, alguns pássaros alertavam sobre coisas que o ser humano jamais entenderia. Falta a leveza de planar e experienciar outros ventos, aqueles que sopram acima da testa. E falta, do mesmo modo, consideração ao pisar no menor grão de terra, desde sempre ignorado.

– Fervi assim que soube da sua vinda – disse para o Gean, que estava sentado em uma das duas cadeiras feitas de palha seca, muito bem tramada, concedendo ao assento um ar acolhedor. Qualquer um poderia passar horas lendo um livro ali até cair no sono, finar-se e se deixar hipnotizar pelo balanço das folhas.

– Hortelã, laranja, camomila, coentro, limão e várias outras coisas mais. Gosto de misturar o que tenho plantado e ver no que dá.

Com calma, pegou a bebida. Um copo de chá com líquido em demasia, levemente amarelado. Do lado de fora do vidro, gotas corriam feito meninos de rua brincalhões, sem tempo a perder.

Foi preciso dar um gole grande para sair da zona de perigo de um possível entorno desastroso e úmido daquele chá, que brincou com o paladar do Gean dum jeito misterioso.

Sentiu vazio mesmo com a boca cheia, depois azedo, uma vontade de pedir açúcar, mas como um bilhete sedutor que convida a dançar, tudo ficou doce. Mistura perfeita. Mistura atípica, novidade para o paladar.

Desde que se mudou, nunca mais se viram. Em seis anos, conversaram pouco, comparado ao laço afetivo que criaram antes da cidade toda parar para procurar e nunca encontrar.

Quando o Gean saiu, não deixou somente a cidade. Deixou de levar consigo até mesmo a brisa que tinha ali conquistado. Os materiais são bagagens levinhas, por isso é mais fácil descartá-las. Reter novos dá a impressão de recomeço, igualmente descartável.

Longe, mas sem potencial de se distanciar das lembranças, resolveu voltar. As recordações não perseguem, elas estão sempre atadas e golfam mesmo de olhos fechados. É que a mente não fecha.

As lembranças estão escritas em papéis porque tudo o que vale sempre está escrito, e ficam guardadas, vigiadas por uma grande pedra. Não foram mãos que as escreveram e nem que ali encerraram a pedra que de tão presente, torna-se transparente. Quando a tocamos para acessar os papéis e descartar aqueles que queremos nos livrar, deparamo-nos com o encontro das mãos. A esquerda e a direita juntas, sem conseguir remover sequer uma única lembrança escrita.

Prontas, as recordações levantaram. E de tanto que tocavam no piano de sua cabeça, o Gean voltou.

O Josué, que foi um dia seu melhor amigo, e que um dia também foi uma das lembranças sinfônicas, vários papéis sob a pedra, agora estava ali outra vez. Os olhos úmidos, inquietos; os lábios secos, agitados; as mãos dançando no espaço enquanto explicava o trabalho que teve em construir a casa em um lugar afastado da cidade e transformá-la num lar.

Aquele garoto de outrora, que estava dentro do Josué, parecia ter sido plantado junto às árvores do quintal. Cresceu e se transformou num fenômeno sólido. Sua copa apontada ao céu, deixando que o vento a embalasse o quanto fosse preciso para criar o mais natural dos movimentos.

Ele, o Josué, tinha braços vigorosos, formados pelas sacas de adubo que já havia carregado. Mãos fortes que seriam capazes de cavar em qualquer chão, abrir qualquer buraco. Mas ao mesmo tempo, a configuração que trazia em seus dedos, em cada nó de osso, era de uma gentileza de pôr criança a dormir, ou de dar água fazendo concha. Amabilidade falângica que protegia os brotos, acobertava e fazia duvidar que aquela fossa havia sido ele quem cavara e fechara, ocultando o que ambos buscam esquecer: o inesquecível; o que todos ainda procuram: o desaparecido.

– Seis anos. Muita coisa mudou desde que resolvi evitar essa cidade – outro gole, com saudade do gosto raro do chá: vazio, azedo e doce.

– Mas algumas permanecem iguais: constantes falta de luz que deixam as ruas no escuro, as Três Marias no céu, lojas abrindo e falindo em menos de um ano, meia dúzia sendo seis, buracos nas estradas, familiares e amigos em buscas incansáveis, jornal todas as quartas e sábados. Inclusive os anúncios são os mesmos! – e riram.

– E tem suas obras, também – telas carregadas na medida exata de tinta, espalhadas pela casa em lugares estratégicos, pinturas do passado. O Gean tinha alguns quadros como aqueles guardados em caixas escondidas, e seria capaz de lembrar cada nome que foram dados a eles.

– Não empunho pincéis há anos. Tentei, mas só guardo uma única cena e com ela não posso trabalhar. Você sabe, cena daquela noite! Então parei antes que alguém fosse ver meus futuros quadros com os maus olhos que a eles são dignos.

– Você disse que os anúncios do jornal são os mesmos? Então quer dizer que...

– Está lá sim, impresso igual desde a primeira publicação. A mesma foto do rosto, o mesmo jogo de palavras e na mesma página dois. Mas está aqui também, totalmente diferente.

– É uma perda você não pintar mais – o Gean percebeu que estava presente naquela casa sem nunca ter nela entrado. Reconheceu o local, como quem se identifica o mesmo no espelho da manhã ao acordar.

Já esteve por ali antes, inclusive com o Josué. Demorou para se surpreender com o local por manter-se distante seis anos, e por conta da aflição de uma noite sem luz nos postes, com um farol queimado no carro, uma estrada terrível e um jovenzinho desafortunado.

– Todos nós... – disse o Josué olhando com aperto nos olhos para um pedaço de terra do quintal. Plantados lá estavam pés de laranja, de limão, de mamão, de tangerina, de gente, de amora, de jabuticaba e até de mamona – ... perdemos. – finalizou com a voz decrescente, deixando um fragmento do seu pensamento à mostra, como um gesto derradeiro da antiga amizade valiosa para que o Gean antevisse que seu futuro seria semelhante ao de seis anos antes.

A volta do Gean era o início do descortinar que o Josué temia todas as noites, que o fazia dormir atordoado, tomado pelo pânico do possível achado. Seu amigo de longa data era o único que fazia-o retorcer-se de pavores hipotéticos depois do almoço solitário, e vomitá-lo tal qual mastigado. A sua náusea era o legítimo sinal da angústia do cárcere, causada pela revelação comum a todos que são surpreendidos em desfortúnios semelhantes.

– Fui embora daqui para ver se esquecia e voltei para ver se esqueço aquilo – o Gean não sabia dos papéis com lembranças escritas presos por uma pedra pesada dentro da cabeça, e tampouco sabia que as folhas só voam quando ficam suficientemente leves para serem levadas pelo vento.

– Coisas fortes desse tipo, Gê, não costumam ser esquecidas por aí. Não saem numa noite qualquer para dar uma volta, desaparecem e nunca mais voltam pra casa... – um olhou e o outro também. Pares azuis e castanhos, o Gean e o Josué, a água e a terra, o céu diurno e o noturno. – Você foi pra longe. Já eu, para o mais perto possível, e parece que continuamos perdendo da mesma forma – continuou depois de uma pausa para observar o gole de chá descer garganta abaixo do Gean. – Mas agora você não pode mais ficar. Sua vinda ameaça tudo o que demorou para estar nesta harmônica desordem.

– O que mesmo me assegurou que tem neste chá? – perguntou o Gean ao perceber que o Josué não havia tomado sequer um gole, enquanto seu copo estava a um fio de esvaziar-se.

– É uma mistura de tudo o que eu planto aqui.


JosuéWhere stories live. Discover now