CAPÍTULO 3

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— Não era do meu conhecimento que você tenha recebido a incumbência da guarda da honra de lady Stonne, Bridgerton. — Era o senhor Lewis falando. — Ou será que sua irritação se deve ao fato do seu nome nem ao menos constar na lista de apostas do clube? Se isso lhe fizer sentir-se melhor, ficarei mais que feliz em apostar em xelim em você.
Após um breve momento de silêncio, muitos sons foram ouvidos. Primeiro, risadas de escárnios que a deixaram consternada. Logo em seguida, o som inconfundível de tumulto formando-se, objetos sendo derrubados. Foi preciso toda a força de vontade do mundo para Emma resistir ao impulso de espiar pela fresta da porta. Escorada na parede, ela ouviu algo — ou alguém — colidindo contra o chão, e antes que reconhecesse o som de passos vindo em sua direção, um homem enfurecido passou por ela.
George Bridgerton.
O corpo todo dela congelou, menos os seus lábios, que se curvaram em um breve sorriso de admiração.
Os olhos de George estavam nublados de raiva. No entanto, apenas a cegueira completa o impediria de ver Emma Stonne parada ao lado da porta da sala — que era exclusivamente destinada ao lazer dos cavalheiros — com olhos arregalados e marejados. Mas que inferno, pensou, detendo-se. George a encarou em silêncio, a pouco metros de distância, usando a sua melhor expressão afugentadora, mas, aparentemente, ele não era tão intimidador quanto acreditava.
O que ela fazia parada ali? Logo um bando de homens irritadiços passaria por aquela porta, e não seria nada aconselhável que eles a encontrassem plantada no meio do caminho. Seria desconcertante para ambos os lados. Ele não sabia o que a garota tinha ou não escutado, mas pela rigidez de sua mandíbula, podia jurar que ela tinha ouvido o suficiente.
Nos poucos segundos que ele teve para pensar, tentou convencer-se que lady Stonne não era sua responsabilidade. Ele devia seguir seu caminho. A garota tinha uma família para defendê-la, afinal de contas. Seu tio devia estar ali em algum lugar. Ela não era problema dele. Agarrando-se a esse pensamento, George se virou e começou a se afastar.
Um fungado baixinho o fez parar novamente.
Existia algo em sua natureza que o impedia de abandoná-la, desprotegida, no corredor da casa de seu tio. Antes que qualquer reflexão sobre consequências pudesse influenciá-lo, ele voltou a andar, no entanto, dessa vez, arrastou a garota com ele. Algum dia pensaria no passado e consideraria aquela uma das atitudes mais estúpidas que já tomara na vida, mas naquele momento, ele achou por bem ignorar as repreensões de sua consciência e a levou para o local mais próximo e seguro que pôde lembrar.
Assim que atravessou a porta do escritório com lady Emma Stonne ao seu lado, fechando a porta atrás deles, George se arrependeu. Por um segundo aterrorizante, enxergou a cena pelos olhos da sociedade e acabou soltando um xingamento na presença da garota. Onde estava com a cabeça? A reputação dela estaria arruinada se os flagrassem ali. E ele estaria preso a ela por toda a vida.
— Voc-cê po-pode ficar aqui a-té se re-recomp-por.
Ele virou as costas para a garota, seus passos firmes o guiando para a saída. Estava a meio passo de ser livre quando a voz dela o alcançou.
— Por favor, fique. — Emma pediu, ao perceber que ele estava indo embora.
George exalou, incomodado.
— Na-não devemos es-estar aq-qui sozin-nhos. É ina-napropriado.
Ele ouviu o vestido dela farfalhar pelo chão ao invés de sua voz e não pôde resistir à curiosidade. Virou-se para observá-la e a viu diante da janela, a luz do luar banhando sua pele alva como a lã branca, enquanto seus olhos fitavam o horizonte oculto pela névoa da noite.
— Voc-cê precisa qu-que eu cha-chame alguém?
Ela soltou um riso amargo e deu de ombros.
A garota girou a cabeça e o fitou intensamente. Ele viu algo no olhar dela que o capturou subitamente, não houve tempo para se proteger. Conhecia bem aquele diálogo de palavras não ditas, quando um gesto, um simples movimento, ou um mero jeito de olhar, era capaz de estabelecer uma comunicação.

"Por favor", era como se todo o corpo dela sussurrasse.
Cedendo ao impulso, George se afastou da porta e decidiu ficar.

***

Emma soltou o ar que estivera prendendo – finalmente aliviando seus pulmões – bem devagar para que o Senhor Bridgerton não percebesse.  Foi mesmo a sua voz que acabara de suplicar a um cavalheiro solteiro que ficasse a sós com ela em uma sala parcamente iluminada? Bem, o timbre parecia muito com o seu, de fato, contudo, a ideia parecia algo que dificilmente se formaria em sua mente.
Era algo infame de se desejar, mas a possibilidade de ver-se sozinha naquele instante fazia seus olhos arderem em protesto. A solidão certamente a convenceria a render-se ao choro.
— Peço que me dê apenas alguns minutos para me acalmar, senhor Bridgerton. – explicou, constrangida – Depois prometo não voltar a incomodá-lo.
Ele não respondeu. Apenas se moveu até um aparador no canto da sala e serviu-se de uma bebida. Emma sempre invejara os homens por poder recorrerem a uma boa dose do líquido cor de âmbar toda vez que a vida se apresentasse intolerável.
— Eu posso beber um pouco?
Ó céus, definitivamente, era a voz dela dizendo todas essas sandices. Mesmo que não fosse um exemplo de decoro, jamais agira com tamanha indiscrição na presença de um cavalheiro com o qual não compartilhasse laços de sangue. Ela estava prestes a desculpar-se pelo pedido atrevido, quando a resposta dele a silenciou.
— É f-f-forte dema-a-is.
Emma tentou sorrir.

— Considerando a última hora da minha vida, acho que isso é exatamente o que eu preciso.
Negando com um gesto de cabeça, George tomou mais um gole.
O Sr. Bridgerton, refletiu Emma, incapaz de refrear o pensamento, tinha feições muito agradáveis para um homem com o semblante tão sério.
— E se considerarmos a bebida para fins terapêuticos? O senhor há de convir que esta foi uma noite difícil para uma jovem debutante em sua primeira temporada. Os meus músculos ainda estão doloridos por causa da queda. Certamente meu corpo relaxaria com um pouco, apenas uma dose insignificante, disso que você está bebendo. E eu não posso nem lembrar o que aqueles homens asquerosos disseram... Meus nervos sofrem, senhor Bridgerton.

Ele bufou. Seria esse o som da vitória? Um segundo depois, o coração mole de George falou mais alto que sua prudência.
— Um g-gole. — sentenciou, estendendo seu próprio copo para ela.
O corpo dela enrijeceu. Ele esperava que ela tomasse do mesmo copo em que ele havia acabado de tocar com os lábios? Aquilo parecia algo íntimo demais, até mesmo para eles, que estavam trancados sozinhos.  Como se pudesse ler seus pensamentos, ele lhe lançou um olhar desafiador e sustentou o copo no ar, a poucos centímetros de distância da boca dela.
Ele esperava que recusasse. E essa constatação fez com que Emma julgasse impossível mudar de ideia.
Lentamente, ela desceu os lábios sobre o cristal. Ele inclinou ligeiramente o copo, para que ela pudesse beber do líquido, e Emma pôde sentir o aroma almiscarado do perfume masculino que o homem usava, misturado com o cheiro pungente da bebida.
Ela estava encantada com o momento. Encantada com aquele homem. Aquilo era o mais próximo que já chegara de beijar alguém. Oh, ela não era tola, sabia que não era a mesma coisa, contudo, ainda assim, a sua língua deslizou cuidadosamente pela parte de fora do copo, e não que ela fosse admitir para si mesma, mas a verdade é que ela ansiava pelo gosto dele, muito mais que qualquer bebida. Ela queria prová-lo.
O pensamento indecoroso a assustou.
Ela decidiu tomar um longo gole de uma vez e acabar logo com aquilo. Péssima ideia. A bebida era amarga e desceu queimando por toda a sua garganta, até incendiar o seu estômago. Ardia. Ardia. Ardia como o fogo do inferno. Ela começou a tossir, e fez uma careta, provando o gosto horrível que se alastrara por toda sua língua.
Alguns minutos se passaram e ela continuava a sentir os efeitos terríveis da bebida. Por que os homens bebiam aquilo? Tinha um gosto horrível. Ela precisava de água. E mel. Ou qualquer outra coisa doce. E precisava desesperadamente que o Sr. Bridgerton parasse de rir dela, como ele fazia naquele exato momento.
Ela o fitou, carrancuda
— Um cavalheiro jamais riria do infortúnio alheio. — ralhou Emma.

— Ac-c-credit-te em mi-m. At-t-té a rainha, com t-toda sua nobr-e-eza, r-riria da careta q-q-que a senhori-rita fez.
Nisso ela tinha que concordar com ele.
— Por que o senhor não me avisou que a bebida era repugnante? E por que, em nome de Deus, os cavalheiros gostam de beber isso? É pior que remédio!
Ele deu de ombros.
— É u-m-ma q-q-questão de pa-paladar. — Ele sorveu o restante da bebida, e ela não pôde deixar de se perguntar se o lábio inferior dele havia tocado no mesmo local que o dela. — Al-lém disso, v-você p-pare-cia tão determ-mida-a, q-q-que considerei me-lhor não de-de-destimul-lá-la.
Ela pensou em continuar a repreendê-lo, mas, na realidade, achou a cena toda cômica, mesmo sendo ela o motivo da graça. Seu orgulho não estava ferido. E, fora isso, ela adorou o som da risada rouca do Sr. Bridgerton.
— Acredito que tenha sido uma penitência justa para a minha insistência sem sentido. — Emma riu, relembrando a expressão bela e tranquila do rosto dele enquanto se divertia as custas dela. — Provavelmente, o senhor não irá compreender, pois é um homem. Mas para nós, damas, com uma frequência preocupante nos sobrevém uma vontade voraz de experimentar algo que nos é proibido. Talvez, tenhamos herdado essa característica de Eva, que foi facilmente tentada pela serpente. Então, às vezes, eu apenas... desejo fazer o que não devo. Como beber uma bebida masculina, ou vagar sozinha por corredores de uma casa desconhecida.

— Ou arriscar su-sua repu-pu-putação.  — ele a surpreendeu com sua afirmação.
'Ou ser beijada.'
Emma queria que ele a beijasse? Fez de tudo para que sua mente não formulasse uma resposta. Para se distrair, foi impulsivamente até o aparador e se serviu de mais um pouco de conhaque. George até tentou impedi-la, porém, de súbito ela sorveu todo o conteúdo do copo. Dessa vez, Emma conseguiu não fazer careta, ainda que continuasse odiando a bebida.
Emma queria que ele a beijasse? Se fez a mesma pergunta de antes, mas agora, longos minutos depois, Emma sentiu-se tonta demais para raciocinar. Também sentia calor, seu corpo demasiadamente mole. Qual era a pergunta mesmo?

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