Capítulo 5

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Talvez a ausência de lembranças fosse uma dádiva celestial. Era pedir muito que Deus se compadecesse dela e apagasse aquele fatídico baile da história da civilização? Que ela pudesse voltar no tempo e decidisse não ter saído de casa naquela noite?
Mas, por outro lado, as grandes lacunas em sua mente sobre o que acontecera na Casa Bridgerton na semana anterior dificilmente deveriam ser interpretadas como favor divino. Castigo seria mais apropriado. Não se lembrar mantinha Emma em um constante estado de apreensão, temerosa diante do nebuloso e impreciso conjunto de lembranças que tinha do evento.
No dia seguinte ao baile, ela acordara com uma quase insuportável dor de cabeça. O seu quarto – ao qual ela não fazia ideia em como tinha chegado – ainda parecia rodar à sua volta quando sua tia Dothe solicitamente lhe informara acerca de seu mal súbito e como a viscondessa, Lady Katharine Bridgerton, agira como uma anfitriã impecável e lhe ajudara.
A tia começou a tagarelar logo em seguida, o que fazia com muita frequência, mas o lado racional de Emma ainda se via preso à reação que o sobrenome "Bridgerton" lhe provocou. Foi como se a simples pronúncia da palavra despertasse todos os sentidos do seu corpo. Então ela se lembrou. De muito pouco, na verdade, mas Emma sabia que não fora um sonho, ou delírio de sua imaginação, ela realmente lembrava-se de ter estado na companhia do Sr. George Bridgerton em uma sala pouco iluminada. Sozinhos. E para seu total desalento, a jovem era incapaz de se lembrar restante da noite.
Ela também recordou-se de que ele a tinha defendido. Ah, como poderia esquecer a veemência e fúria que acompanhavam a voz dele enquanto fazia com que os outros cavalheiros se calassem? Ele foi corajoso e honrado, e lutou por ela. Emma buscou refrear aquele pensamento. Motivada por um sentimento de autopreservação, tentou se convencer de que o homem se comportaria daquela forma em defesa de qualquer dama, porque provavelmente essa era a verdade, e ela não queria deixar que seu coração fosse tolo ao ponto de supor que ele fizera aquilo por sua causa. Que ela possuísse alguma importância para ele. Seria loucura. Insano. Impossível.
E seria o ponto alto de sua existência.
Tudo bem, consolou-se Emma enquanto descia as escadas, talvez estivesse um pouco encantada com Sr. Bridgerton. Mas, certamente, não era um estado permanente e irremediável. Afinal ele era um homem belo, educado e gentil, mas não era o único no mundo que possuía esses atributos. Essa sensação fugaz logo seria esquecida e a agitação que ela sentia dentro de si ao pensar nele se desvaneceria.
Emma só precisava de uma coisa para esquecer aquele homem: de suas lembranças. Enquanto os eventos daquela noite permanecessem envolvidos por um mistério provocativo, ela simplesmente não conseguiria pensar em outra coisa. Agarrada a esse argumento, Emma concluiu que era de seu interesse reencontrar o Sr. Bridgerton.
Quando ela parou em frente a porta que fazia divisão entre o corredor e a sala de visitas, inspirou fundo e tentou acalmar seus nervos. Era apenas um chá. Ela fazia isso todos os dias pontualmente às cinco horas desde que era uma garotinha. A única diferença é que essa tarde ele estaria ali. Oh meu Deus, ele estaria ali! Possivelmente, naquele exato instante o personagem principal dos seus sonhos nos últimos dias estava bem atrás daquelas paredes.
Ainda dava tempo de desistir?
Não.
Corrigindo sua postura, ela fez uma breve oração e, em seguida, moldando sua expressão facial para que não relevasse sentimentos mais profundos, entrou na sala com determinação.

O convite deixara George surpreso. Lady Stonne era a última pessoa que esperava ver no futuro. Todavia, ali estava ele, sentado no sofá de um duque, ao lado de sua família para uma tarde regada a chá, uma variedade exorbitante de sanduíches e conversa sem sentido.
– Está ansioso para a temporada de caça desse ano, Bridgerton? – o duque de Grandfield perguntou.
Havia um número considerável de Bridgertons naquela sala, mas o visconde achou por bem responder.
– Sim, claro. Meu administrador me informou há poucos dias que a minha propriedade em Kent está repleta de cervos em idade adulta, perambulando entre as árvores.
De soslaio, George percebeu uma leve alteração no rosto de lady Stonne, como se o assunto a desagradasse por completo.
– Meu filho Edmund – continuou Anthony – Está organizando uma festa no campo para que os homens possam se reunir e caçar. Seria uma honra que se unisse a nós, Grandfield. Também haverá um sem fim de lazeres reservados às damas, de modo que lady Stonne dificilmente se sentiria entediada.
– Seria adorável tê-la conosco, milady. – Kate concordou, sorrindo em direção a Emma.
A garota retribuiu o sorriso.
– É muito gentil de sua parte nos convidar, lorde Bridgerton. Mas o médico proibiu meu pai de fazer longas viagens.
– Bobagens! – ralhou o velho duque. – Aquele jovenzinho insosso é meu médico, não meu superior. Não me sinto inclinado a obedecê-lo.
A boca de Emma comprimiu-se até que se formasse uma linha fina. George, pôde notar que a garota estava se esforçando para segurar a língua.
– Claro, papai. – ela disse sem muita convicção.
O duque pareceu perceber que a filha se aborrecera.
– No entanto, Bridgerton, receio ter ​que declinar do convite. Há muitos assuntos que preciso revolver antes... – um silêncio embaraçoso recaiu sobre o grupo antes que Grandfiel continuasse: – Há muito a ser feito, em tão pouco tempo. Além disso, estou empenhado em encontrar um marido para minha Emma, o que me impede de me ausentar da cidade por um longo período.
A conversa seguiu seu curso, contudo, as palavras do duque ainda pareciam pesar sobre eles. "Tão pouco tempo", era nítido que a doença o preocupava. Havia alguns anos que Londres tomara conhecimento de seu estado deplorável de saúde. Não havia vigor ou robustez naquele homem, e George pensou consigo mesmo que o duque não deveria tardar em aceitar uma das propostas que certamente lady Stonne receberia.
Antes que fosse tarde demais.

Uma sala cheia de pessoas não era o local propício para uma conversa embaraçosa. Por isso, Emma atreveu-se em convidar o Sr. Bridgerton, juntamente com a mãe e a tia dele, para conhecer os jardins da propriedade.  Os dois caminhavam entre as roseiras, quando Kate e Penelope ficaram para trás, estudando minuciosamente um lírio que ainda sequer desabrochara.
Emma sabia que não havia como mais retardar o assunto.
– Sr. Bridgerton. – ela começou, sem coragem para encará-lo. – Sinto que devo agradecê-lo novamente pelo baile. Você muito gentil em me defender – a força de sua voz diminuiu até transformar-se em um sussurro – Eu também devo me desculpar...
O homem silencioso ao seu lado fez um gesto de dispensa com a cabeça, indicando que um pedido de desculpas não era necessário.
– Oh, sim, eu preciso. – retrucou Emma. – Comportei-me de modo abominável e espero que o Sr. acredite em minhas palavras quando digo que não tenho por costume agir daquela maneira. Não é como se eu me visse sempre desacompanhada na presença do sexo oposto...
– N-naão se pre-preocu-pe, m-milady. Eu enten-do-do perf-feitamente que o oco-corrido n-naão passou de u-ma situa-ção excep-pcional.
A jovem suspirou, aliviada.
– Perfeitamente. Eu jamais, em nenhum momento anterior em minha vida, agi daquela forma e garanto-lhe que não repetirei tal comportamento no futuro.
Ela dava indícios de estar desesperada que ele acreditasse nas palavras dela. George quis pôr um fim naquela conversa, não era agradável para ele lembrar que esteve a ponto de comprometer-se por causa de uma ação impulsiva de sua parte.
– Lady-dy Stonne, sugi-ro que encerre-m-mos o assunto e esqu-queçamos o ocorri-do. Nin-ninguém sabe-berá q-que est-tivemos sozinhos. Sua repu-putação será preserv-vada.
A reputação dela?
Apenas naquele instante Emma parou para pensar em sua reputação. No fato de que sua vida poderia ser facilmente arruinada naquela noite se o Sr. Bridgerton não fosse um perfeito cavalheiro. Se ele fosse um homem diferente... Bom, nesse caso, Emma estaria com sérios problemas. O que a surpreendia nisso tudo, era que toda sua preocupação se voltava somente a um homem, especificamente. Ela não queria que George Bridgerton pensasse mal dela. Emma sequer considerou o restante das pessoas que existia no mundo.
Onde ela estava com a cabeça?
– A verdade é que me lembro placidamente das minhas ações naquela noite, meu senhor. É incontestável que eu o acompanhei até o escritório do visconde, no entanto, quando tento buscar memórias posteriores o meu cérebro falha miseravelmente. Eu fiz ou disse algo pelo qual deva implorar seu perdão?
Finalmente Emma sustentou seu olhar no dele.
– N-n-n-n-n-n-n-não...
Rapidamente um rubor cobriu o rosto dela, fazendo-a arrepender-se da pergunta. Pela forma como o homem ficara desconcertado, não restavam dúvidas que Emma cometeria algo grave.
– Desculpe-me...
Ao ouvir o tom lamurioso da voz da jovem, George deteve-se em seu caminho. Emma também parou, mantendo os olhos fixos no ombro dele ao invés de seu rosto. O desejo dele era que a garota simplesmente esquecesse o que passou, e ambos pudessem seguir suas vidas como antes, quando eram completos desconhecidos um para o outro. Só que algo no semblante de lady Stonne o fez perceber que ela estava se penitenciando, como se um grave erro tivesse sido cometido. Decerto que ele não faria a indelicadeza de recordá-la que ela havia tentando se despir na frente dele, sob a alegação que o vestido lhe sufocava. A cena permanecia vívida na mente de George, mais do que ele gostaria, mas tudo aquilo devia ser enterrado.
– Cristo, o senhor está corando! Deve ser pior do que imagino então... Por favor, diga-me o que aconteceu.
George conferiu se a mãe e a tia continuavam afastadas e, em seguida, olhou dentro dos olhos de Emma.
– Na-nada aconteceu. – foi difícil para ele domar as palavras naquele momento. – V-você ape-nas sentiu-se indi-disposta e eu a aju-judei. S-se não lembra é-é por-porque vo-c-cê be-be-beu um pouco e lo-log-go adorme-ceu.
O corpo dela relaxou ao ouvir aquilo. Devia acreditar no que ele dizia, para sua própria paz de espírito. Agora que tudo estava resolvido e Emma teve a chance de se desculpar, não restava muito a dizer. Ela suspeitava que o Sr. Bridgerton apreciava o silêncio como quem estima um amigo, mas ela não sabia reagir àquele vazio de palavras entre eles. Ela o guiou errante até alguns canteiros habilmente trabalhados pelo jardineiro, sentindo-se uma estranha e confusa. Dentro do peito, o seu coração acelerava-se a cada minuto que passava, o sol já baixava no horizonte, anunciando o fim da tarde. Em breve eles se despediriam, e o final daquele encontro tinha o gosto amargo de adeus.
– Devemos voltar, Sr. Bridgerton? – Emma perguntou, quando não havia mais nada para mostrar da propriedade.
Ele assentiu, oferecendo o braço a ela.
– E-eu lhe a-gra-gradeço o passeio.
Naqueles minutos que passaram juntos, George não agiu como um galante conquistador. Não elogiou a cor de seus olhos ou o perfume de seus cabelos. Não houve flerte e Emma devia agradecê-lo por isso. Geralmente, todo aquele jogo de sedução masculina a deixava incomodada. Mas de algum modo o desinteresse dele fez algo dentro dela se retorcer desagradavelmente.
George Bridgerton claramente não tinha o desejo de ser um de seus pretendentes.
E não havia nada que Emma pudesse fazer para mudar tal fato. Ou havia?

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