Desse profundo sono fui tirado
Por hórrido estampido, estremecendo
Como quem é por força despertado.
Ergui-me, e, os olhos quietos já volvendo,
Perscruto por saber onde me achava,
E a tudo no lugar sinistro atendo.
A verdade é que então na borda estava
Do vale desse abismo doloroso,
Donde brado de infindos ais troava.
Tão escuro, profundo e nebuloso
Era, que a vista lhe inquirindo o fundo,
Não distinguia no antro temeroso.
"Eia! Baixemos, pois, da treva ao mundo!"
— O Poeta então disse-me enfiando
— "Eu descerei primeiro, tu segundo".
— Tornei-lhe, a palidez sua notando:
"Como hei de ir, se és de espanto dominado,
Quando conforto estou de ti'sperando?"
— "Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
Piedade, medo não, como hás cuidado.
"Vamos: longa a jornada exige pressa".
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.
Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
Nas multidões, que ali se apinhoavam.
"Conhecer" — meu bom Mestre diz — "não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
Antes de avante andar convém saberes
"Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
Portal da fé, em que és ditoso crendo.
"Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
Também sou dos que penam neste abismo.
"Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp'rança,
Desejos, que para sempre se frustaram".
Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
A quem do Limbo a suspensão alcança.
"O Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
A fé, que os erros todos desafia.
"Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?"