A linha da vida dela

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SETE: Ela achava que sabia de tudo, achava que conhecia o mundo. A vida era perfeita e as pessoas, inocentes. Todos sorriam pra ela que, perfeita, nunca fazia nada de errado. Tinha tudo o que queria sem esforço e rejeitava o que não queria sem precisar pensar duas vezes. Tinha a vida toda traçada e um plano que iria por certo se concretizar, como todo o resto que já conseguira. Moraria com os pais até velhinha e então sairia em férias com os dois. Não precisariam de mais ninguém, seriam apenas os três pra sempre. Teriam muito dinheiro e brincariam muito, aonde quer que fossem. Mas um dia, tudo foi mudando aos poucos.

QUINZE: A vida não era mais perfeita e as pessoas, não mais inocentes. Não sorriam mais pra ela que, perseguida, fazia tudo errado. Nunca conseguia o que queria, por mais que se esforçasse e era obrigada a fazer tudo o que não queria, mesmo que insistisse no contrário. Não tinha mais a vida traçada e nenhum plano a ser concretizado. Não sabia mais o que iria fazer, apenas que sairia de perto dos pais o mais rápido possível. Arranjou, então, um bad boy qualquer. Primeiro matava só as aulas de física e saía na garupa da moto do bonitão. Eram passeios inocentes. Se encontravam com os amigos dele, sempre em praças e locais abertos. Depois, já estava matando as aulas de geografia e português e matemática e todas as outras também. Saia com o playboyzinho pra encontrar os amigos nos bares, tomava várias e chegava em casa chapada. Corria direto para o banheiro e trancava a porta. Os pais estavam ocupados demais trabalhando para se importarem com seu estômago. Mas um dia, tudo mudou de repente.

DEZOITO: A vida era uma bela merda e as pessoas, um bando de idiotas. A encaravam quando passava na rua e ela, rebelde, ria delas e as insultava. Quando não conseguia o que queria, juntava sua guange e encurralava o vacilão num beco pra "ensiná-lo uma lição". Tatuou a palavra "vadia" no peito e seguiu a vida com um bad boy (por semana). Morava num apartamentinho escuro de uma vizinhança tão esquisita quanto ela. Todos de mal com a vida. Não fez faculdade, mesmo podendo: era coisa de perdedor. Bebia, fumava, cheirava e, pagando, fazia de tudo. Apagava todas as centenas de mensagens dos pais da caixa postal diariamente, mas não mudava de número: "vai que preciso de dinheiro", ela pensava. Mas um dia, tudo mudou pra um carrossel de confusões.

VINTE E DOIS: Sirene. Luzes vermelhas. Correria. A cabeça rodava. Gritos. Empurrões. Tiros. "Reage.", dizia sua cabeça. "Limpa o nariz. Levanta. Corre.", mas ela continuava ali. "São os tiras. Pega a mercadoria. Veste as roupas.", mas não saia do chão. Braços de um lado e de outro, luzes vermelhas cada vez mais fortes e uma sirene cada vez mais ensurdecedora. De repente, escuridão e silêncio. Acordou. Grades. Multidão. Falta de espaço. Prisão. Desespero. Choro. "Ei, você!", levanta a cabeça. Porta aberta. Algemas retiradas. Papai e mamãe. Casa. E naquele dia, tudo mudou de novo.

VINTE E QUATRO: Eles cuidaram dela de novo. Deram a ela atenção, carinho, muitos pedidos de desculpa e lágrimas. A boa filha tornava à casa e tudo seria perfeito de novo. Esqueceriam o passado e recomeçariam. Tudo estava bem e a vida, traçada. Os planos se concretizariam: ela iria para a reabilitação, depois: faculdade. Não era coisa de perdedor. Não queria mais saber de bad boys, ficaria com os pais por um bom tempo. No futuro, talvez, encontraria um bom homem e se casaria. Teria filhos e os ensinaria bem, não os deixaria repetir seus erros e os manteria por perto. Daí pra frente, tudo sempre mudou. Diversas vezes e em diversas velocidades. Fez faculdade, mas teve muitas notas baixas. Arrumou um emprego e um namorado. Quebrou seu coração. Uma, duas, várias vezes. Perdeu o emprego, mas seus pais ainda estavam lá.

TRINTA: Casou-se e teve três filhos. Ensinou-os bem. Cresceram saudáveis e felizes, eram amáveis com todos e prezavam muito a família. Mas então, mais uma mudança. Divorciou-se e os filhos ficaram tristes e confusos. Não aguentava vê-los assim e voltou a beber. Percebeu o que estava fazendo e pediu a ajuda dos pais. Foi morar com eles por um tempo e isso deixava as crianças felizes (e os avós também). Riam juntos à mesa e a vovó esquecia muitas coisas. Às vezes, chorava sem motivo e começou a fazer algumas loucuras também. Não era mais engraçado. Então, a vovó morreu. Os filhos já crescidos agora cuidavam da mãe e do avô, e nunca, nesse tempo todo, viram o pai (que nunca foi pai quando precisaram). A mamãe tinha o vovô e eles ficariam bem juntos. Os filhos saíram de casa e seguiram suas vidas. Vinham aos fins de semana vê-los e passavam as festas em casa, com o retrato da avó na parede, orgulhando-se deles.

SESSENTA: E então, veio a sabedoria. O pai havia falecido há dois anos e os filhos estavam todos casados e felizes. Ligavam sempre para saber se estava bem e ela, sábia, estava finalmente em suas desejadas férias. Aprendera que ainda sabia muito pouco, mas sabia que conhecia o mundo. Sabia que a vida não era perfeita e que todas as pessoas tem algo de bom, apesar de nem todas serem inocentes. Tinha tudo de que precisava pelos anos de esforço seu e de sua família. Não tinha planos e não precisava deles. Sua vida já havia sido traçada e, em parte, percorrida. Ficou doente e estava sozinha. Chamou os filhos, não queria estar sozinha.

OITENTA: Então, ela faleceu. Os filhos choraram, trouxeram flores e penduraram seu retrato ao lado dos retratos dos avós. Mas ela não chorara, ela sorria. Estivera doente, mas não estivera sozinha.

A vida como ela não deve serWhere stories live. Discover now