Capítulo 1 - Quando ele morreu e foi parar no quarto dela

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Era cedo e o sol já entrava pelas cortinas rendadas do quarto quando Letícia abriu os olhos e viu Renato sentado na borda da cama. Por alguns segundos sua mente não processou o que estava acontecendo, mas então se assustou e recuou assustada contra a cabeceira. Pensou, em poucos instantes, em mil coisas diferentes, inclusive como acertar a cabeça do rapaz e chamar a polícia, mas antes que ela pudesse tomar qualquer atitude, Renato se levantou e se afastou, erguendo as mãos e pedindo que ela se acalmasse.

- O que você está fazendo aqui? - Perguntou ela. Renato respirou fundo e coçou a cabeça. Não sabia como dizer aquilo da maneira certa, então disse da maneira errada mesmo.

- Eu morri. - Afirmou ele.

Houve um silêncio ridículo e era possível ouvir com clareza os quero-queros gritando no topo dos prédios ao redor. À distância, algum carro buzinava compulsivamente. Letícia puxou os joelhos contra o corpo.

- Como assim? Como você entrou aqui?

- Por cima. - Respondeu Renato.

- Eu não estou brincando, eu vou chamar a polícia!

- Eu não estou brincando também! - Exaltou-se o rapaz com impaciência. Aproximou-se com destreza e ergueu a mão até quase tocar na garota. Ela se apertou mais contra a cabeceira, assustada, mas não havia motivo. A mão dele estava apenas erguida no ar sem um mínimo tom de ameaça. Seus olhos suplicavam algo desconhecido.

Letícia entendeu o que ele queria. Ergueu a própria mão, hesitou e então o tocou. Mas "tocar" não é a palavra certa para o que aconteceu, pois a mão de Renato era imaterial e impossível de ser segurada. Por várias vezes Letícia transpôs a mão, o braço e depois o tronco do rapaz, cada movimento mais rápido e assustado que o outro. Reprimiu um grito quando finalmente entendeu que Renato estava falando a verdade.

- Como?! - Perguntou ela.

- Eu não sei. Também sempre achei que seria diferente. - Respondeu o rapaz com muita naturalidade. - Posso sentar? Vou me sentar. - E sentou.

- Como foi que você morreu? Eu vi você na aula uns dias atrás...

- Isso não importa, foi bem bobo. - Disse ele. - Eu caí e tal...

- Sei... - Silêncio. Quero-queros. - E o que você está fazendo aqui?

- Pois é, esse que é o foda. - Ele coçou a cabeça de novo, depois coçou o braço. Volta e meia encarava os olhos dela, volta e meia desviava o olhar para qualquer coisa do quarto. Ela esperou cada vez mais impacientemente. - É que aconteceu de você ser minha alma gêmea.

- Como é que é? - Disse ela. Esqueceu o medo e relaxou o corpo. Sentou mais para perto de Renato e nem lembrou que estava apenas de calcinha e uma camiseta. - A gente mal se conhece! A gente quase nunca se fala!

- Então! Foi isso que eu disse quando eu cheguei lá em cima! - Exclamou o rapaz. - Mas eles disseram: "Nah! Almas gêmeas vocês eram, se não aproveitaram isso é problema todinho de vocês". Aí eles me mandaram pra cá de volta pra resolver as coisas.

- Que coisas?!

Renato deu de ombros. A verdade é que eles não tinham nada a ver um com o outro, exceto o fato de estudarem no mesmo lugar. Nunca trocaram nenhuma palavra ou sequer saíram uma única vez. Só sabiam o nome um do outro pela eventualidade de um amigo conhecer outro amigo que conhecia outro amigo que conhecia alguém que um dia falou o nome do outro. E se viam nos corredores.

E a verdade é que por causa dessa estranheza, dessa finitude toda entre eles, talvez sequer viessem a se conhecer mesmo que tivessem estampado nas testas: sou sua alma gêmea.

- Eu não acredito nessas bobagens! - Exclamou Letícia. - Eu não acredito em amor.

- E eu não acredito em fantasmas! - Replicou Renato abrindo os braços.

O despertador de Letícia tocou. Tinha de trabalhar.

- Olha... eu sinto muito que você morreu, sinto muito mesmo, mas eu preciso que você saia porque eu tenho de ir trabalhar.

- Eu não posso sair. - Respondeu Renato. - Eu estou preso aqui. Eu tentei sair, mas não consegui. Aí eu sentei e esperei você acordar. Eles disseram "vá lá e resolva isso, depois você volta". Mas eu não sei o que resolver e achei que você pudesse me dizer.

- Como eu vou saber?! - Ela estava começando a se irritar. - Se você não pode sair, o que eu faço com você?

Renato deu de ombros novamente. Letícia se irritou, saltou da cama e se enfiou no banheiro por quase uma hora. Tomou banho, trocou de roupa, passou a pouca maquiagem que sempre passava no rosto e saiu com toda a esperança do mundo de que tudo não tivesse passado de um sonho. Renato continuava sentado no mesmo lugar, pacientemente olhando para a janela. O sol que entrava pela janela iluminava seu rosto. Definitivamente não parecia com um fantasma.

- E se eu convidar você pra sair? - Ela perguntou.

- Eu não sou um vampiro.

- Tá! E agora?!

- Vai trabalhar, ué. Quando você voltar, a gente vê.

E ela foi. Trabalhou o dia todo com apenas metade da concentração. Lá pelo meio da tarde, incapaz de parar de pensar naquele assunto, escreveu no Google "espírito alma gêmea problema voltou do além o que fazer" e leu todos os primeiros sete sites relacionados ao assunto. Infrutífero. Saiu do trabalho e foi para a faculdade.

Letícia desenhava. Não desenhava tão mal assim, de acordo com sua própria opinião, mas naquele dia seus traços estavam terríveis. A mão tremia com a expectativa de voltar para casa e encontrar o rapaz morto. Sentada numa carteira à esquerda da sala, olhou para o lado e viu o canto onde Renato costumava se sentar - ou onde ela achava que ele costumava se sentar, porque nunca havia realmente prestado atenção nele.

O vazio de uma carteira qualquer a estremeceu.

Memento MoriOnde as histórias ganham vida. Descobre agora