Dia 15

Quiriq seguiz, quiriq bes, quiriq toğuiz, on bir, jïirma bes, otiz tört . Estas são as palavras repetidas por vozes masculinas e femininas. Ouvi durante toda a noite. As vozes são diferentes e a cada vez que uma delas volta a falar, parece diferente da última vez, pelo que concluo que seja uma transmissão ao vivo. A repetição do termo quiriq, me leva a acreditar que de fato sejam números e acho que não vou demorar até que possa identificar a língua. Estou em uma cidade relativamente grande e amanhã ou depois pretendo vasculha-la em busca de uma biblioteca ou escola em que possa encontrar e utilizar um dicionário. Pelas ruas, carros e prédios tanto comerciais quanto residenciais, há muitos smartphones espalhados, mas sem internet o Google não é muito útil para traduzir. E mesmo nos celulares com muitos pacotes de idiomas instalados, não consegui uma identificação positiva da língua. Por isso estou imaginando que possa ser algum idioma escrito sem alfabeto latino. Apostaria em algo com a mesma raiz que o russo, soa parecido. Então foi isso. Hoje não procurei pelo telefone; até porque não tocou. O que pode ser um indício: o telefone supostamente toca em dias alternados. Mas não passei o dia inteiro procurando celulares e computadores em que pudesse usar a internet para tentar traduzir a mensagem. Também procurei por jornais, revistas e outras mídias que pudessem esclarecer o acontecido. Mas tudo o que encontro é muito recente. As pessoas perderam o hábito de armazenar informação em mídias físicas, isso poderia ser muito útil agora. De qualquer modo, sempre terei as bibliotecas. Preciso apenas encontrar alguma.

Dia 16

O telefone tocou novamente hoje e percebi que havia me distanciado muito mais do ponto em que parei dois dias atrás, quando ouvi pela segunda vez. Deve ter acontecido enquanto eu procurava alguma maneira de traduzir os números. Se forem números. Pois bem, isto não é exatamente um problema. Depois de ter tentado me aproximar outra vez do prédio em que o aparelho tocava, decidi voltar amanhã para verificar duas coisas: 1 – se de fato o aparelho toca em dias alternados; 2 – se posso encontra-lo. Mas estes planos mudaram ao longo do dia. Agora estou a quilômetros de distância, nos limites da cidade. Encontrei uma biblioteca que chamaria de modelo. Possui milhares de títulos, dicionários, enciclopédias e arquivos abarrotados de jornais e revistas. Assim sendo, tomei o dia de hoje para ler sobre a Guerra. Descobri que preciso definir melhor sobre qual guerra preciso saber. Acredito ainda não ter mencionado, mas a humanidade passou pelo menos quinze anos combatendo um invasor. Isso mesmo. Alienígenas. Ao menos quinze anos, pois era o tempo que tinha se passado quando eu morri. Agora sabendo que não morri. Ou talvez não. Foram quinze anos esgotando nossos recursos – sobretudo humanos – e também quase uma década de engenharia reversa, em que não descobrimos nada sobre eles. Até o dia do conflito em que morri não sabíamos como podiam viajar tão longas distâncias pelo espaço, não sabíamos como se alimentavam, se ou como respiravam, como eram seus sentidos básicos, que tipo de consciência teriam, como se organizavam politicamente além das patentes militares, o que queriam – além de nos exterminar, se eram vulneráveis a alguma de nossas doenças, se poderiam nos transmitir alguma de suas doenças. Agora que escrevo estas palavras, me ocorreu que este pode ser o motivo de meu isolamento. Uma doença alienígena. Talvez cidades inteiras ao meu redor tenham sido movidas para evitar o contágio. Mas pelo que me lembro da escola e dos outros poucos lugares em que estive logo depois de acordar, não é como se tivessem saído a muito tempo atrás. As pesquisas com engenharia reversa resultaram em muitas publicações e teses, encontrei algumas cópias na biblioteca e pretendo anexar a este relato, para que sirva de informação a quem possivelmente ler. Também anexei cópias de revistas científicas – ou não – e pesquisas tratando da possibilidade da tecnologia de transporte alienígena ter relação com conhecimento de buracos-negros (que nós humanos possuímos de maneira muito limitada). Agora farei um breve resumo do que encontrei nos livros de História e nos veículos de notícias. No dia em que morri, um ataque químico ou biológico dizimou um terço da população mundial e aproximadamente um quarto dos animais. O agente principal das bombas era o antimônio, que presente no ar durante dias e semanas seguidos, intoxicou e matou milhões de pessoas e animais. Outros morreram depois pela falta de médicos, remédios, comida e água. O ataque partiu dos próprios humanos e era segredo, exceto para os militares, políticos e grandes empresários envolvidos. A intenção era eliminar os alienígenas, ainda que para isso fosse necessário exterminar também parte da população. Uma grande operação, igualmente sigilosa, teve lugar horas antes, para que figurões e outras pessoas selecionadas em cada país fossem devidamente acomodados em bunkers. Não foram muitas as cidades atacadas, porém, como já esclareci antes, a morte de tanta gente de uma única vez, acabou por ocasionar o óbito de outros tantos doentes, famintos, feridos, recém-nascidos, grávidas em situação de risco ou trabalho de parto, idosos e crianças. O vento também deu sua contribuição para o extermínio em massa, espalhando a contaminação. Esta é uma outra hipótese: talvez eu carregue ainda resíduos da bomba, mesmo após tantos anos dormindo. Se é que não morri. Mesmo assim preciso continuar procurando alguém, a necessidade de saber com certeza absoluta, urge. Continuando o relato; após décadas de desastre econômico, queda vertiginosa da natalidade, barbárie e outras situações resultantes de anos seguidos de guerra, as nações foram se reerguendo como podiam. Algumas deixaram a miséria que as acompanhou por séculos para se tornarem as únicas produtoras de determinado bem de necessidade primordial, mudando seu status entre os países. Outras desapareceram, quando seus residentes não tiveram outra alternativa a não ser migrar. Fato é que a escassez de recursos e a insegurança geraram conflitos localizados. Guerras civis – dezenas - invasões. Até que culminaram na Quarta Guerra Mundial, entre os países do leste asiático e hemisfério sul, ainda de posse de muitos de seus recursos naturais, contra os outrora países de primeiro mundo, detentores de avanços tecnológicos e bélicos muito significativos. Devo acrescentar para quem possa ler este relato, não fosse a Terceira Guerra Mundial, é provável que tivemos conseguido resistir a invasão dos alienígenas por mais tempo, e talvez todo este cenário que acabo de descrever nunca teria acontecido. Fato é que este quarto conflito internacional varreu os últimos recursos e boa-fé que a humanidade ainda possuía. Os relatos mais atuais dos livros e também as notícias dão conta de que a fome e as doenças assolaram todo o planeta e reduziram o número de pessoas a milhares. Alguns países ainda tinham uma taxa de natalidade considerável, porém com mortalidade infantil voraz. Eu poderia dizer a quanto tempo tudo aconteceu, se soubesse que dia é hoje. Uma última novidade: encontrei vários dicionários. O sol está quase se pondo e tenho que sair e passar a noite na rua, o prédio da biblioteca não me parece seguro. Está ficando muito escuro aqui dentro e estará muito escuro lá fora também. Assim, vou examinar os dicionários amanhã. Como são centenas, selecionei apenas os que traduzem línguas com a mesma raiz do russo. Não descartei os dicionários de russo, mesmo sendo um idioma que eu conheço, porque não é uma língua que eu domino, e posso ter me enganado quanto ao fato de serem números as palavras que ouvi na transmissão. Assim que o sol voltar, começo a pesquisa.

Dia 17

Encontrei a tradução bem depressa. Sim, são números, e bastou traduzir os primeiros para que eu soubesse de que se tratava. Confirmei todos usando o dicionário, claro. São coordenadas. Aos que lerem este diário, será fácil determinar para onde apontam apenas lendo os primeiros números, assim como foi para mim: 48, 45, 49. Estes três já me deram a pista de uma localização muito famosa. Porém, tive a confirmação ao traduzir o número seguinte: 11. É isto, estou indo.

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