Solução

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Dia 12

Três longos dias de caminhada. Nada nem ninguém. Como deve ter transparecido neste diário, nada é mera força de expressão. Há muitos edifícios se esfacelando, veículos enferrujados, roupas e calçados espalhados por quintais, toda a sorte de objetos pela rua. Não em grande número, mas pude ter uma boa amostra nos poucos prédios em que ousei entrar. As cidades alternam casas e prédios a ponto de cair, com estruturas desmoronadas e locais que parecem impecáveis. Mas não serei imprudente de experimentar. Quanto ao ninguém, é literal, e não preciso reforçar uma vez mais, apesar de ter que confessar que me satisfaria muito ter o relato de finalmente encontrar uma pessoa. Sexta-feira. Seria cômica a necessidade de criar um Wilson, mas não sinto falta de companhia, apenas preciso encontrar alguém e verificar as hipóteses para a minha condição. A ausência total da necessidade de ver e falar com outras pessoas reforça a sensação de morte que por vezes esqueço. Caso seja, a morte é muito estranha. Mas deveria ter começado o relato deste dia com algo realmente importante: um telefone tocou. Sim. Ouvi um telefone tocar, pelo menos oito vezes. Não posso precisar a distância pois o vazio e o silêncio facilitariam que eu pudesse ouvir mesmo de muito longe. Assim, o dia de hoje foi todo gasto em vasculhar a cidade em que estive e gritar por alguém. Usei todas as línguas que conheço e gritei o mais alto que pude. Por citar os gritos, outro indício de que não morri: ecos da minha voz. Ressoaram por toda parte. E ninguém veio. Pudera, o que eu preciso é atender o telefone. Mesmo assim me ocorre que se alguém ligou, outro alguém deveria estar aqui por perto para atender. Razão pela qual amanhã voltarei a procurar. Podem estar se escondendo. Preciso de alguma forma sinalizar que venho em paz, que somos no mínimo aliados.

Dia 13

Arrisquei minha segurança e entrei em muitos prédios hoje. Claro que todos têm telefones. De início tirei um por um do gancho e tentei ouvir sinal de linha. Nada. Depois do vigésimo ou vigésimo sexto, desisti, voltei para rua e percebi que devo esperar que o telefone toque novamente. Por isso retornei ao ponto em que estava quando ouvi pela primeira vez. Não poder sair deste perímetro é um problema. A pessoa, ou pessoas, que estão esperando para atender ao telefone podem ser agressivas e perigosas, e esperando me torno alvo fácil. Preparei uma bandeira branca que agito de tempos em tempos e grito "paz", periodicamente, em todas as línguas que posso. Ninguém responde. E para completar, o telefone não tocou hoje. Não fossem os oito toques de ontem, eu poderia apenas concluir que foi o vento movendo a campainha de um telefone mais antigo. Vou esperar até amanhã à noite. No meu próximo relatório, espero trazer novidades quanto ao telefone.

Dia 14

O telefone tocou novamente, não no dia de hoje, mas na noite de ontem, um tempo depois de ter encerrado meu relato. Não sei dizer porque não coloquei no relatório do dia treze. Mas isso é algo sem importância. Até porque, na busca pelo telefone, algo importante aconteceu. Foram oito toques outra vez, durante os quais corri em desespero tentando localizar a fonte. Acredito que tenha me aproximado consideravelmente do ponto de origem. Porém o que realmente importa é que durante a busca ouvi uma transmissão de rádio. Sim, isso me lembrou que tentei utilizar o rádio comunicador da base militar e este captou alguma coisa. Pode ser esta mesma transmissão que ouvi hoje, ou melhor, outra. Podem ser várias transmissões. Havendo transmissões de rádio, há esperança de atividade humana organizada. A transmissão desta vez era um pouco mais nítida. Era não. É. Estou neste momento dentro do carro cujo rádio toca a tal transmissão. Há um barulho forte de estática, mas posso ouvir claramente vozes masculinas e femininas falando com uma inflexão muito sem emoções em uma língua que não compreendo. Mas conheço o suficiente sobre línguas para saber que se tratam muito provavelmente de números. Ou talvez seja uma recitação de alguma tradição oral. Fico com os números. Acredito que sejam coordenadas e pretendo traduzir e ir ao ponto que indicam. Porém darei mais uma chance ao telefone, já que hoje cheguei mais perto. Passarei a noite no carro. Ouvir a transmissão é necessário e prazeroso. Não estou só, em breve entenderei melhor isso tudo. E preciso encontrar o padrão para tentar traduzir.

SacrifícioWhere stories live. Discover now