Solidão

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Dia 8

Por alguma razão, as proximidades de onde acordei estavam mais limpas, e as estruturas mais firmes. Gostaria de ter tido tempo e oportunidade de ler mais livros de História e notícias sobre política e o mundo, talvez houvesse alguma explicação. Mas acredito agora que já tenha cruzado três ou quatro cidades, pequenas cidades, não necessariamente rurais, mas pequenas. Penso que as regiões rurais, caso também tenham sido abandonadas, estejam totalmente cobertas por vegetação. Ou desertas. Sem animais, não consigo imaginar como algumas espécies de plantas possam se reproduzir por polinização. Não há nem mesmo insetos. Algo matou todos os animais. Eu gostaria de poder analisar alguma amostra de água e verificar a existência de plâncton ou algas. A razão para ter levado dois dias para alcançar a base é que estava no alto das montanhas. Para alcançar a base no vale, precisei escalar. Há certamente túneis e pontes que transpõem a cadeia, mas considerei um risco desnecessário, sendo que não tenho hora marcada e que não sinto cansaço. Assim escalar e passar pela cadeia de montanhas me tomou um dia e meio. Ininterruptos. Mas não sinto fome. Nenhuma necessidade de repor energias ou líquidos. Não me alimentei ou bebi água em momento algum desde que acordei. Tenho tentado me lembrar quando exatamente acordei, e percebi que o máximo que consigo fazer é voltar àqueles cinco dias de vertigens e confusão. Cada vez mais sinto que morri. Mas tenho certeza absoluta de ter um corpo. A escalada das montanhas pareceu muito real e física. De tempos em tempos, paro um pouco para sentar ou deitar, mas meu corpo não está cansado. São as vertigens. Elas voltam todos os dias. No início eram quase seguidas umas às outras. Agora tenho quatro ou cinco por dia. Para alguém que tem dias vinte e quatro horas, são bem poucas. Tenho caminhado e caminhado sem parar. Quando acordei era estranho o silêncio, e durante a noite, as sombras da vegetação me assustavam. Agora já me acostumei a ambos. Ou talvez seja porque sei com certeza absoluta que nada nem ninguém virá. A verdade é que sempre que penso a respeito percebo que não posso ter certeza. Estar em um lugar completamente deserto não significa que todas as cidades do mundo se fizeram vazias. É possível que eu esteja no único ponto do mundo em que os animais e a civilização desapareceram. Não encontrei meios com os quais analisar uma contaminação por radiação, mas não posso descartar a hipótese de estar em uma área propositalmente isolada. Caso esteja em uma área de quarentena, isso pode significar que carrego uma coisa altamente contagiante e perigosa. Preciso confirmar esta possibilidade, pois sendo este o caso, devo me resignar a ficar onde estou e me manter longe de outros seres vivos. A hipótese de contaminação por alguma doença pode explicar muito sobre meu caso, agora que estou pensando a respeito. Por exemplo, a confusão com o tempo, a sensação de ter morrido e voltado, a falta de fome ou cansaço, a insônia e, claro, as vertigens. Mas uma pessoa doente caminharia quase quinhentos quilômetros?

Dia 9

À minha frente, pelo chão, estão espalhados vários objetos que acredito terem me pertencido e fotos de amigos e companheiros das Forças Armadas. É desolador vir até uma base e encontra-la vazia. Nostalgia é um sentimento muito curioso. Sei pelos livros e jornais que muitas décadas se passaram desde os confrontos, mas caminhando pela base, senti como se tivesse concluído meu treinamento a poucos dias. Este lugar deveria estar cheio de jovens e saudáveis soldados adquirindo disciplina, valores e conhecimentos em armas, sobrevivência e estratégia bélica. Mas o que primeiro me chamou atenção foi o fato de tudo parecer bem melhor conservado que nos outros lugares por onde passei. Os edifícios estão praticamente intactos, e como falei, encontrei muitos objetos como novos. Medalhas e condecorações que conquistei. Placas, certificados. Meu uniforme cerimonial. Tudo isto torna este relato muito importante. Talvez o mais importante deste diário de exploração. Encontrei até mesmo um espelho, com sua superfície lisa e brilhante impecavelmente inteira. Não que eu tivesse esquecido minhas próprias feições, mas estamos sempre voltando a bizarra sensação de que morri. Não sei se isto me alegra ou desespera, porque reforça a hipótese de doença. Estou em uma base militar. Apesar de ser paramentada com uma enfermaria e até mesmo aparato para cirurgias de emergência, não há, claro, algum tipo de laboratório em que eu possa testar meu sangue, urina, fezes e outros fluídos corporais – ainda que eu soubesse como fazê-lo. Caso eu esteja doente, isto será um grande problema, pois pretendo atender ao chamado. Digo, não é um chamado, eu que optei por me referir assim. O rádio comunicador capta uma frequência e me parece, depois de quase um dia inteiro ouvindo, que pude escutar vozes entrecortadas. Também liguei os computadores e televisores que encontrei. Tentei acesso à internet. Mas apenas o rádio funciona. Num primeiro momento achei previsível, mas depois ponderei que algum tipo de sinal via satélite devesse estar disponível também. Não me lembro de meu treinamento incluir conhecimento técnico em telecomunicações, mas tentei tudo o que pude para me conectar com algum sinal de satélite; nada feito. Dada a natureza dos confrontos de tempos atrás, não me admiraria ser a única pessoa que sobrou – apesar de ser estranho e de certa forma assustador ter acordado décadas depois – mas quem teria desligado nossos satélites? O melhor a respeito da base é que pude me "reabastecer". Agora tenho uma mochila onde carregar fósforo, mais papel para fogueiras, gasolina, material para primeiros-socorros, o rádio comunicador. Não são itens necessários para me deslocar com segurança, mas também peguei alguns dos meus pertences e fotos de meus companheiros. Troquei de roupa, óbvio, e peguei dois casacos. Um estou vestindo e o outro vai também na mochila, assim como dois pares extras de botas. É de se imaginar que tenha me armado. Carrego uma Bereta e um rifle. Um casal de lindas Desert Eagles está na mochila. Também levarei junto ao corpo um par de binóculos. E claro: uma bússola. Penso que seria prudente levar comida, porém quero economizar espaço e peso, já que não tenho sentido fome desde que me lembro de acordar. Caso sinta, não terei nem mesmo que caçar: as ruas e paredes estão cheias de vegetais. Muitos devem ser comestíveis. Partirei agora mesmo, ao encerrar esse relato. Estas são as duas novidades principais: o sinal no rádio e minhas lembranças. Agora sei meu nome: Dominique. 

SacrifícioWhere stories live. Discover now