Silêncio

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Dia 1

Inicialmente este relato será confuso. Escrevi e apaguei várias linhas diversas vezes. Parece que agora estou recobrando um pouco do controle. Então eu não sei que dia é hoje. Este nem é o primeiro dia. Não sei exatamente como nem o que escrever. O tempo está estranho e eu não sei bem quantos dias se passaram desde que acordei. Já escrevi e apaguei tantas vezes, o papel parece que vai rasgar. Deve ter cinco dias que acordei. Não tem ninguém aqui. Aqui não é onde acordei. Só hoje encontrei papel. E uns lápis. Borrachas. Isto na verdade é uma escola. Claro que as crianças se foram. Eu quero dizer. Espero que tenham fugido ou qualquer coisa assim. Mas eu também não seria capaz de escrever algo quando acordei. Ou. Eu não sei se acordei quando penso que acordei. Talvez já tivesse despertado antes. Pode ter sido muito tempo antes e só cinco dias depois eu notei. Não sei se passaram cinco dias. Não tem ninguém aqui. Restam apenas escombros da escola. E da cidade em volta. Não tem nenhuma única pessoa. Onde eu acordei também. Agora tenho papel. E uns lápis. Borrachas e canetas também. E posso ler um livro. Mas até agora não vi nenhum que não esteja estragado. Este não é o primeiro dia. Não tem ninguém aqui. Não sei se acordei quando penso que acordei. Pelo menos tenho paredes. Faz muito frio à noite. Não tem ninguém aqui. Sinto vertigens. Vou dormir um pouco.

Dia 2

Parece que escrever deu certo. Preciso escrever porque não tem ninguém aqui. Ontem não dormi nada, na verdade. Tentei manter os olhos fechados por muito muito tempo, mas o sono não veio. Não ter ninguém para conversar é estranho. Não tem nenhum barulho a não ser o vento nos escombros. Não tem animais. Não me lembro de ter dormido desde que me dei conta de que tinha acordado. Como escrevi ontem, não sei se estava dormindo ou por quanto tempo dormi. Mas escrever foi uma boa ideia. Li umas cinquenta vezes o relato de ontem. Ontem não foi o primeiro dia. Ia dizer que se passaram 5 dias, mas na verdade não sei. Li tantas vezes o relato de ontem que decorei. Mas não teria ninguém para recitar. Vou parar de escrever agora e explorar a escola. Está tudo devastado. Foi tudo destruído. Ou as coisas todas desmoronaram porque foram abandonadas. Vou parar de escrever e explorar. Não tem ninguém aqui ou em outro lugar. Caminhei uns cinco quilômetros até chegar aqui. Não tem ninguém. Muitos prédios caídos. Carros abandonados. Também não há cadáveres. Nem animais. Nem animais mortos. Parece abandonado. Mas está tudo destruído. Parece que foi a muito tempo. Ou nós fomos vencidos e todos foram mortos. E tudo foi destruído. Se está tudo abandonado, para onde foram todos? Não há pássaros nas ruas. Será que mataram também os animais? Talvez as pessoas tenham fugido. Preciso saber para onde. Vou parar de escrever e olhar em volta. Procurar pistas pela escola. Pelos prédios abandonados. Mas não quero soltar o papel e ficar só. Eu gostaria de um gravador. Ouvir minha própria voz. Vou parar de escrever e explorar. Faz muito silêncio em todo lugar.

Dia 3

É perigoso caminhar pela escola. Por isto, amontoei todas as carteiras, mesas e portas de armário que pude no pátio externo e fiz uma espécie de abrigo. É baixo e não posso sentar, apenas deitar lá dentro. Minhas ideias parecem mais lúcidas agora. Também juntei muito material seco para uma fogueira. Para muitas. Vasculhando a escola, encontrei muitos livros e revistas em boas condições. Na verdade, apenas bons o suficiente para serem lidos. Alguns jornais em bom estado também. Li muito desde a manhã. Acredito que por isso consegui organizar melhor minhas ideias. Mesmo que lê-los tenha me causado tamanha perturbação. Aparentemente, os livros de História e Geografia tratam de um mundo que mudou a tempos. Notei que mesmo a gramática e a ortografia de algumas palavras mudou. É como se tivessem passado muitas décadas desde que dormi. Então. É estranho escrever isto, pensei a respeito durante toda tarde, enquanto remexia os escombros para formar minha cabana improvisada e juntar combustível para minha fogueira, mas preciso escrever por mais improvável que pareça. Talvez muitas décadas tenham passado desde que eu morri. Bem. Escrevendo assim me parece de algum modo que me certifico de ainda estar com vida. Mas eu poderia sim, muito facilmente ter morrido em batalha. Sou oficial do exercício. Primeiro tenente. Identificação 73SS. É engraçado. Acabo de me dar conta de que não lembro meu nome. Não tinha prestado atenção a este fato até agora, enquanto faço este registro. Acredito que não pensamos em algo assim quando despertamos em meio a um deserto de caos. Como nos chamamos. Nossos nomes. Idades, endereço, email. Mas eu me lembro com exatidão de estar longe, muito longe de casa. Entre as lembranças que estão despertando aos poucos, sei que conheço várias línguas. Nem todas sou capaz de falar, mas instrumentalmente, sei diversas. Francês, alemão, mandarim, kimbundo, catalão, latim, grego, português – europeu e brasileiro, inglês – plenamente capaz de entender e identificar as variações escritas na Europa, Austrália, Canadá e Estados Unidos. Sou poliglota. Se bem me lembro, e as memórias agora me bombardeiam em turbilhão, este foi um dos motivos de terem me destacado para esta missão. Eu gostaria de lembrar qual exatamente era. Talvez encontrasse a resposta para ter passado tantos anos dormindo ou em catalepsia, e também ter sobrevivido a seja lá o que tenha devastado esta cidade. Mas posso estar me precipitando. Talvez a cidade toda não esteja devastada, talvez apenas este território tenha sido abandonado. Bem, esta pode ser a resposta para o vazio: radiação. Caso esta seja a resposta, não sei se fará alguma diferença, mas logo pela manhã, vou embora daqui. Estou me sentindo bem melhor. Talvez esta noite eu possa dormir. Será que de fato não morri? Não sinto nenhum pouco de cansaço ou sono.

Dia 6

Se é que existe a mínima possibilidade deste diário ser lido por alguém algum dia: acredito que tenha registrado anteriormente que o tempo parece passar de forma estranha. Agora mesmo está escuro. E sim, me ocorreu novamente que posso realmente ter morrido. Se isto for morte, é muito anticlimático. Além de sem graça. Não pude flutuar, voar ou transpor parede alguma até este momento. Não que tenha tentado. Enfim. Os dias continuam passando com manhã, sol a pino e entardecer, contudo, parecem durar muito mais do que me lembro. E claro, não consigo dormir. Caminhei quase 200 quilômetros desde o terceiro dia. É o que tenho feito: caminhar e vasculhar. Sei bem que uma pessoa comum, em condições favoráveis caminha cerca de 50 quilômetros por dia, mas como já registrei, não tenho sentido cansaço. Na realidade, nem mesmo fome. E novamente volto à possibilidade de ter morrido em batalha. Sei que depois de tanto caminhar avistei o que parece ser um posto ou base militar muito ao longe, cerca de cem quilômetros adiante. Quero deixar esta cidade e procurar alguma outra. Tudo é estranha e incomodamente quieto e parado por aqui. Penso que já registrei o fato de não haverem animais. Nem mesmo notei aviões sobrevoando a cidade. Já mencionei as plantas? Estão por todo lado, tomando absolutamente tudo. Muitas calçadas estão completamente destruídas pelas raízes das árvores. Enfim. Tenho considerado a possibilidade de não mais parar de explorar e avançar à noite para procurar abrigo, já que 1 – não tenho sono ou cansaço, 2 – este lugar está absolutamente deserto. Sou minha própria companhia e o único som que me acompanha é do vento nos escombros. E nas plantas. À noite elas formam ilusões de ótica assustadoras. Além disso, é perigoso abrigar-se sob os prédios em ruínas. A cidade está se despedaçando e as estruturas despencam ao meu redor o tempo todo. Escolhi as mais baixas e robustas para me alojar nestas duas noites, mas decidi, a partir desta mesma noite vou aproveitar esta estranha vitalidade e caminhar também após escurecer. Infelizmente a precariedade dos edifícios se faz ainda mais perigosa na escuridão, impossibilitando a exploração. Nestas duas noites passadas, com auxílio do fogo, li muito conteúdo dos jornais, revistas e livros que pude trazer comigo. Não tenho nenhuma mochila ou qualquer tipo de bolsa e quase qualquer objeto que tenho tocado nos últimos dias está esfarelando por conta da erosão dos anos. Isto, claro, inclui minhas roupas. Logo não terei mais sapatos. Daí porque carrego comigo apenas o que posso portar em uma das mãos. Isto resultou em dois livros, quatro revistas e três jornais. Em todos li basicamente a mesma coisa, que resumirei amanhã. Agora é hora de avançar alguns quilômetros, tenho urgência de alcançar aquela base militar. 

SacrifícioWhere stories live. Discover now