Um homem alto, imundo e extremamente magro bateu no vidro do carro do lado do motorista. Disse algumas palavras. Ele queria dinheiro. Théo balançou a cabeça. O sinal se abriu. Seguimos nosso caminho. Olhei para trás e o homem fez um gesto com o dedo do meio. E cada vez menor ficava o viciado do qual sentimos pena e medo. Até que sumiu por completo.

— Chegamos moça!

Théo estacionou o carro na frente de um parque de diversões, que tinha uma lona de circo ao lado. Fiquei boquiaberta e com os olhos arregalados.

— Pronta para se divertir essa noite?

— Eu não acredito nisso... Sabia que um dos meus sonhos de infância era ir num circo — eu falei pasmada olhando para ele, com as mãos no rosto.

— Então, eu estou realizando um dos seus sonhos?

— É... Tá.

— Que tri! Fico feliz em saber disso.


1993.

Nas férias de julho, vovó Ana costumava reunir toda a criançada da família na sua casa, que mais parecia uma colônia nessa época. O que se repetiu religiosamente em 1993. Ao contrário de muitas regiões do nosso país, em que o frio estava em sua plenitude, até com a presença de neve em algumas localidades do sul, em Novo Ipê às tardes eram típicas de um verão, com muito sol, mas ao invés da chuva, ele era acompanhado de toda a secura e poeira tão comuns no nosso inverno sem frio. Naquele ano, sete crianças foram passar uma temporada lá. Quatro meninas e três meninos. O quintal ficava cheio durante o dia todo. Juntavam os meus primos com as crianças da vizinhança, uma farra só. Os sete eram multiplicados, chegando muitas vezes até 20 crianças correndo e pulando naquele quintal da nossa avó, que assemelhava a uma pequena floresta encantada ou um mini bosque com suas árvores, plantas e flores.

Eu participava de poucas brincadeiras, pois as recomendações do médico eram para que eu não me esforçasse muito, por causa dos problemas respiratórios que eu tinha. Então, eu passava a maior parte do tempo com a minha vozinha na cozinha, a observando e aprendendo com ela a arte de doces caseiros da fazenda.

Numa manhã, uma das minhas tias chegou com uma novidade para contar, um circo tinha armado a lona no estacionamento do ginásio poliesportivo da cidade.

— Mãe, arruma as crianças que eu vou levá-las à tarde no circo — avisou titia, tacando o dedo no tacho de doce de caju, que vovó Ana tinha acabado de apurar.

Assim foi feito, todas as crianças ficaram prontas. Eu com meus cabelos loiros ondulados presos numa fita azul, vestido estilo marinheiro da mesma cor; com estampas de âncoras brancas com lacinhos vermelhos e calcei sapatos vernizados pretos. Todos os meus primos estavam muito empolgados. Por volta das 4 da tarde, o Passat vinho dobrou a esquina e logo depois o Belina verde parou na frente da casa. Meus primos começaram a se ajeitar nos carros, chegou a minha vez de entrar. Cheguei a encostar a mão na porta. Minhas tias se entreolharam em silêncio. Uma balançou a cabeça, a outra deu com os ombros.

— Ah! Ela não! — Uma tia disse para a outra, quase cochichando.

Eu ouvi. Elas não perceberam, mas escutei o que foi dito. Uma delas se abaixou e segurou no meu ombro. Encarou-me nos olhos.

— Elisa, depois a tia te leva, tá bom, não cabe todo mundo no carro — ela me disse, com a cara mais lavada do mundo. — Fica com a vovó. Quando a gente voltar, nós traremos muitos doces para você. Está bem?

Senti uma dorzinha invadir-me de mansinho por dentro. Assenti balançando a cabeça, com um beicinho formado em meus lábios. Eram dois carros, em um deles tinham apenas duas crianças no banco de trás. Quando olhei pelo vidro e vi que havia espaço para pelo menos mais duas crianças, eu entendi que elas não queriam me levar. Dei um passo para trás, não disse nada. Não precisava dizer. Sentei na calçada e fiquei observando os carros se afastarem e virarem a esquina com os meus primos sorridentes nos bancos traseiros. Meus olhos se encheram de lágrimas, entretanto não chorei. Entrei correndo pela casa. Tirei os sapatos e as meias. Deixei em cima do tapete do corredor. Arranquei a fita que estava no meu cabelo e joguei-a no chão. É claro que eu estava com raiva. Fui excluída descaradamente.

— Ué, fia, cê não foi? — Minha avó perguntou mexendo uma panela que estava no fogão. Ela era baixinha, com as bochechas e as mãos gordinhas.

— Não vozinha! Eu tô com dô de baiga — eu respondi rápido. Meu problema com a dicção ainda era bem forte e eu ainda estava nervosa.

Cê qué um chazim? — Indagou com seu jeito doce.

— Não, tchau! — Eu disse apressada. Afinal, eu não estava com dor alguma.

Peguei uns biscoitos do pote de vidro, que estava em cima da mesa, e os coloquei no bolso do vestido. Fui para o quintal. Subi com dificuldade os degraus afastados da escada encostada na parede e sentei no muro com as costas junto a uma das colunas da estrutura da varanda dos fundos. Coloquei uns farelos de biscoito do lado, um passarinho aproximou-se e comeu sem pressa os pedacinhos espalhados em cima do tijolo.

Passainho cê góta de mim? As minhas titias não gótam de mim. Elas não gótam, não. — falei como se o bichinho compreendesse as minhas palavras — Eu acho que elas têm vegonha de mim.

Ao anoitecer, escutei o barulho dos carros, meus primos voltaram animados com brinquedos, pipoca e algodão doce, contaram para nossa avó como tinha sido divertido e tudo o que viram no circo. O palhaço, o mágico, os trapezistas, os malabaristas, o elefante, o leão, os macaquinhos, o carrossel, o bate-bate, a gangorra, o tiro ao alvo, a barraca de pescaria...

Um falava junto com outro, tudo misturado, uma bagunça só. Não me juntei a eles, fiquei olhando pelo vão da porta, agachada sentada no chão. Poderia ter sido animado para mim também, mas não foi porque não tinha espaço para mais um no carro. Uma mentira usada para encobrir a vergonha que sentiam de andar comigo. Tinham vergonha de serem vistas com a sobrinha de cara esquisita que falava errado.


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A Menina do CasuloWhere stories live. Discover now