- Não sei ao certo – disse encarando novamente o copo. – Eu só meio que quis voltar.

- Entendi... Neste caso então... – falou tomando o copo dele e servindo outro de outra garrafa, assim como um para si mesma – vamos tomar um drink – sorriu.

- Bom te ver sorrindo – reparou.

-É, estou feliz pelo Diego – mentiu em parte, realmente estava feliz, mas não era por isso que estava sorrindo.

- É um bom motivo – disse com um meio sorriso.

-Desculpe ter falado com você daquele jeito... – disse timidamente.

- Desculpe não ter aparecido assim mesmo. Não é assim que os amigos fazem. – falou apoiando a cabeça na mão mordendo o polegar de um jeito que Rebeca achou hipnotizante.

- As pessoas que eu gosto sempre se machucam, sempre vão embora... Não queria... Não quero que aconteça com você também – ela falou encarando o líquido âmbar em seu próprio copo.

- Isso é muito lisonjeiro, eu acho... – sorriu.

- Lisonjeiro? – perguntou confusa.

- É, posso concluir que faço parte das pessoas que você gosta... – disse fazendo-a rir.

- Talvez eu tenha gostado um pouquinho... Principalmente da parte em que você praticamente salvou a minha vida – pausou – Duas vezes.- Miguel riu.

- Acho válido. – disse dando mais um gole. Um silêncio constrangedor reinou por alguns instantes, até que ele o quebrou.

- Rebeca. – falou com calma, pensando por onde começar – Eu tenho certeza que existe uma razão para temer que as pessoas a deixem. - pausou - Mas veja uma coisa, desde que nos conhecemos, não houve muita normalidade e eu ainda quero estar aqui. Você é uma pessoa que... – hesitou – Esquece, o importante é que eu acredito que você pode conquistar coisas que nunca imaginou, eu queria muito, muito mesmo, que você se juntasse a minha equipe. Realmente acho que você é perfeita para a função que quero te oferecer, e de alguma forma eu... – hesitou novamente - Eu não sei se consigo não continuar cuidando de você, eu sinto que isso faz parte da minha missão e seria muito ruim se eu não pudesse cumpri-la. – concluiu encarando-a com o semblante sério.

- Você está me oferecendo um emprego? – perguntou perplexa.

- E essa foi a única parte que você ouviu... – suspirou – Mas sim, basicamente é isso.

- Eu gostaria muito de aceitar, mas as minhas circunstâncias são peculiares e se eu aceitasse te colocaria em uma situação que provavelmente você vai preferir evitar.

- Por que não me conta e deixa que eu decida? – perguntou olhando nos olhos dela que pensou por alguns instantes.

- Tudo bem, mas não aqui. – falou por fim – Vou fechar o Pub, pode me levar para casa? Te conto no caminho. – Miguel assentiu e aguardou, não demorou muito e ela já estava novamente com suas roupas, entrando no carro dele.

- Tudo bem? – perguntou ao ligar o carro.

- Eu só não sei por onde começar... – deu de ombros.

- Pelo começo talvez? – sugeriu.

- Aí é que está... Eu não tenho começo... Não sei onde tudo começou, nem como... Só sei que... – suspirou pensando se deveria continuar, provavelmente essa seria a última vez que o veria, mas tinha que contar, ela queria. – Um dia eu dei por mim e estava amarrada a uma cama em um hospital psiquiátrico. Não sabia quem eu era, de onde vinha ou por que estava ali, só sabia que não estava sozinha. Haviam as vozes, milhares delas, de todos os tipos, mas eu não conseguia entender. Eu pedia ajuda, mas só conseguia mais remédios, mais tratamentos, e ainda assim elas continuavam, continuaram e continuam... Um dia eu fugi, não sei como consegui, mas gosto de pensar que pelo menos uma vez elas me ajudaram, indicaram uma direção. 

               Eu estava tão desesperada, tudo me assustava, eu lembrava vagamente do mundo fora dali, e fiquei perdida durante dias, sem nome, sem documentos, eu não era ninguém... Alguém uma vez me disse que meus pais me colocaram ali por causa das vozes, que eu era louca, a mais louca. - parou por uns instantes - Esquizofrênica. Ouvia eles dizendo pelas minhas costas... Autista... Não sei, acho que nem eles sabem... Mas os esquizofrênicos ouvem vozes... Então devo ser isso mesmo. - sorriu sem graça - Passei uns dias na rua, fui acolhida por um casal de idosos quando fiquei doente passei uns dias com eles. Meu nome escolhi aleatoriamente, qualquer um... Acho que tinha visto em uma banca de revistas... E assim me tornei Rebeca. Soller era o sobrenome deles, e quando saí de lá pulei de emprego em emprego até chegar onde estou hoje.

         Sou uma mentira entende, não sei nada sobre mim, não há nada além das vozes, nada além daquelas lembranças de sofrimento, nada além de alguns meses na rua, nada além do emprego clandestino que consegui na livraria. Não tenho documentos e provavelmente alguém procura por mim em algum lugar para me internar novamente. – disse sem conseguir encará-lo em seguida. Algumas lágrimas escorriam em seu rosto maquiado e a deixavam ainda mais constrangida. Miguel não falou nada pelo que pareceu uma eternidade.

- Eu sinto muito – ele falou por fim, muito sério. Estacionando o carro próximo a casa dela.

- Eu sabia que seria demais – sorriu resignada, então saiu do carro e começou a subir as escadas.

- Rebeca espere! – Miguel disse seguindo a garota. – Você não entendeu.

- O que eu não entendi? – perguntou parada à porta do apartamento.

- Se você me deixar ajudar nunca mais vai se sentir abandonada e impotente novamente. Deixe eu ajudar você a superar isso tudo. – falou segurando a mão dela de um jeito protetor. Ela quase conseguia acreditar na sinceridade estampada em seus olhos, mas era demais, era muita coisa, era mais do que já havia sido oferecido a ela em toda a sua vida, ela não merecia.

- Não tem que ser assim Rebeca, não precisa ser. – falou com convicção.

            Por um momento se imaginou com ele em um escritório até tarde da noite discutindo algum assunto relevante, mas imediatamente afastou esse pensamento e voltou para a mesa.

"Não tem que ser assim" parecia ouvir a voz dele em sua cabeça, mas infelizmente, precisava ser.

- Prometa que vai pensar, que vai pensar com afinco? – disse entregando um cartão para ela. – Me ligue se mudar de ideia ou se precisar apenas conversar está bem?

- Eu prometo. – assentiu entrando no apartamento em seguida. E neste momento, não conseguiu conter todas as lágrimas que não permitia cair há muito tempo. 

A Última Lágrima do AnjoWhere stories live. Discover now