Capítulo 1

74 5 0
                                    


         Fazia frio, muito frio, a neblina a impedia de ver os enormes portões embora soubesse que estavam lá; afinal, já havia feito aquele trajeto tantas vezes...No entanto, agora parecia diferente, era diferente...Tinha que ser...

          O despertador tocou tirando Rebeca do estranho sonho, sonho este que vez ou outra a visitava. Às vezes chovia, outras o calor era insuportável, outras era o vento que a atormentava... Mas era sempre ela e aquele lugar desconhecido e ao mesmo tempo tão familiar.

         Levantou sem vontade bebendo um gole da água que sempre deixava ao lado da cama, e como em todas as vezes em que tinha aquele velho sonho, estava levemente salgada. No início isso a assustou um pouco, entretanto, como nada havia acontecido até hoje, acabou se acostumando. Já era ela própria suficientemente estranha para se preocupar com um pouco de sal na água.

          Foi até o banheiro e olhou-se no espelho como de costume, cabelos negros e lisos, olhos castanhos grandes e amendoados, nariz fino, boca avermelhada e pele pálida, resumindo, uma garota normal. Bonita, nada demais. Então porque as vozes a incomodavam tanto? De onde vinham? O que eram? E porque a haviam escolhido.

            Beca, como os poucos amigos costumavam chama-la, piscou desviando-se do espelho enquanto pegava a escova de dentes e colocava a pasta, realizando todo o processo de forma automática antes de tirar a roupa e entrar no chuveiro para um banho rápido.

             Suas roupas eram comuns. Gostava de jeans e camisetas largas que caíam do ombro e ficavam muito bem em seu corpo esguio, embora todas as tardes vestisse apenas o uniforme da livraria onde trabalhava, muito menos provocante que o do bar pra onde ia logo depois, e descesse para pegar o metrô.

             Ela sabia que não era seguro ser muito atraente em cidades grandes, principalmente quando não se mora em um bairro nobre e se anda sozinha em horários inapropriados e becos escuros, por isso, não se preocupava com este tipo de coisa. Seu objetivo era não ser vista, não ser lembrada e sempre passar despercebida o máximo possível, tudo por pura sobrevivência.

- Beca! - uma voz chamou por ela quando desceu do metrô no bairro onde trabalhava, ela sorriu para o rapaz franzino que costumava esperar para almoçarem juntos todos os dias. Ela sorriu para ele pensando qual seria seu verdadeiro nome. Pausou por alguns segundos lembrando-se do dia em que fugiu da clínica psiquiátrica e se deu conta que sequer tinha um, ou se tinha não não sabia, o que era mais provável afinal todo mundo tinha um nome, não tinha?  Desconhecia também sua idade, origem ou qualquer outra informação. Lá ela era um número, mas a partir daquele momento... Lembrou-se de olhar em volta procurando um nome... Rebeca... Como a garota da revista da banca ali perto. - Meu nome é Rebeca Soller... - disse para si mesma mais alto do que gostaria.

- É claro que é... - o rapaz afirmou confuso.

- Desculpe, eu só estava pensando alto - disse levemente envergonhada.

- Você dormiu bem? Está meio esquisita hoje - ele falou enquanto se encaminhavam para o restaurante de costume.

- Foi só uma noite difícil... - sorriu lembrando-se das vozes... Ela não se lembrava exatamente quando havia sido a primeira vez... Talvez elas sempre estivessem estado ali, talvez fossem apenas um sussurro e ela não havia se dado conta antes, mas elas acreditava que não, sempre estiveram lá... E fora por causa delas que seus pais a internaram naquela clínica, e por causa delas que fugiu.

            Lembrou-se dos anos de tratamento psiquiátrico, das punições, dos dias intermináveis sozinha amarrada em uma cama, dos remédios que a deixavam dopada demais para se lembrar... E com o tempo as lembranças se foram, todas elas, mas as vozes... As vozes sempre estiveram ali, do mesmo jeito, sem que ela conseguisse identificar o que diziam, sem que fizessem sentido não importava o tanto que se esforçasse para ouvir, podiam ser altas e claras, mas ainda assim não conseguia entender o que diziam, a não ser que elas quisessem...

A Última Lágrima do AnjoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora