6° capítulo

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FURIOSUS SABIA QUE O corpo desacordado da parteira no chão, pulsando sangue cálido por suas artérias, não seria o suficiente para acelerar o processo de maturação. O da mãe, morta na cama, Lucius não poderia usar, pois ele foi usado na sua feitura. O do pai só se fosse necessário, mesmo sabendo que ele desaceleraria o processo; no entanto, ele precisava de tempo até eles chegarem à casa marcada com a cruz e a estrela. O sangue do recém-nascido completaria o processo de maturação.

DUAS CADEIRAS DE FERRO com assento e encosto entrelaçados por fios de polietileno, nas cores azul e vermelho; uma televisão desligada, colocada sobre um tampo de madeira jacarandá adaptada a um pé de mesa de ferro de máquina de costura Singer servindo como rack; um cesto de vime contendo algumas revistas de fofocas sobre celebridades em um dos cantos da parede eram as únicas mobílias da sala; mais adiante, o buraco na parede, Petrus, com a mente presa na preocupação do nascimento do seu filho, não percebeu. Afoito, folheava as páginas da revista umedecendo os dedos em sua língua, sem dar atenção ao que estava escrito. A espera o inquietava. Impaciente, ele cruzou as pernas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, amiúde. Ao entrecruzar as pernas, Petrus fazia um ruído agudo devido o movimento da cadeira de ferro no piso. Imperceptível a qualquer mortal que estivesse a poucos metros dali, o ruído não era para quem tem ouvidos apurados. Lucius o ouviu, o seu instinto animalesco estava apurado, ele já sabia que precisava de sangue para a sua maturação. O destino da parteira, Furiosus e Iratus já sabiam que estava selado, o de Petrus acabaram de saber quando Lucius, mostrando as suas presas, apontou em direção à porta.

 LÁ FORA, NA RUA, O VENTO levantava a poeira do chão, o nevoeiro tinha dispersado havia tempo, o sol estampava no céu o seu brilho, porém, o manto negro impedia o seu reflexo. Cálido e totalmente escuro, o dia surgia com os seus sons característicos: latidos, balidos de ovelhas, mugidos de gados, cantos de galos e pássaros. Aos poucos,  de dentro de algumas casas surgia o ruído da água percorrendo os canos,  seu chiado,  ao romper as torneiras, ou à ação de descarga, no vaso sanitário. De outras, se ouvia o ruído característico de um chuveiro ligado, sinal de que, aparentemente, a vida tomava o seu curso normal. Contudo, uma única casa não apresentava nenhum desses ruídos, e a parteira seria testemunha do que ocorreria ali.

FURIOSUS RETIROU O PENTE DE balas de sua arma e inseriu o pente com cravos. Movimentando o dedo indicador, ordenou a Iratus que erguesse a parteira. Iratus desprendeu do caibro imediatamente e voou em direção ao chão, abraçou a parteira, ainda desacordada, com as duas asas, levantando voo, suspendeu-a no ar, abriu os seus braços e a largou. Imediatamente fechou as suas asas, embicou e desceu com os pés juntos, parou no ar assim que a parteira começou a cair, flexionou os joelhos e arremessou os pés em direção ao tórax dela. Com o impacto, a parteira voou na ascendente, indo de encontro à parede. Lestamente Iratus espargiu o pó do sono para ela não despertar; enquanto isso, Furious disparava a sua arma pregando as mãos, os braços, pernas e pés da parteira na parede. Com as garras dos pés, Iratus fez a sangria no pescoço da parteira. Lucius, até então quieto, teve seu instinto aguçado pelo cheiro de sangue fresco. Com os caninos à mostra, ele se jogou no pescoço da parteira.

O ruído despertou em Petrus a curiosidade, ele foi em direção à porta e abaixou a maçaneta, tentando abri-la, quando um pó denso espargiu do buraco da fechadura deixando-o sonolento. Sem poder de ação, Petrus prostrou-se na cadeira de ferro.

Aos poucos, a luz lhe foi tirada dos olhos como se tivesse faltado energia, mas era a vida que lhe faltaria em poucos instantes. A parteira não acreditou no que estava vendo, o recém-nascido, que até poucos minutos atrás estava pendurado no caibro, agora era um menino a lhe sugar o sangue. Quando finalmente ele a soltou, tirando os cravos que a prendiam na parede, ela viu o seu corpo espatifar no chão. Seus olhos agora enxergavam com clareza: o menino se tornou um rapaz, horrendo, com garras nos pés e mãos, caninos tão afiados como um picador de gelo, e asas querendo brotar de sua pele. Ela se perguntou quem era ele, e por qual motivo ele aceleradamente se transformou em um rapaz com aparência diabólica. Antes que as respostas lhe aparecessem diante dos seus olhos, ela viu um halo de luz, e de dentro dele surgirem os Servos dos deuses que vieram lhe buscar, já que se tratava de um espírito de luz. Ela, porém, lutou para não ir, precisava salvar aquele rapaz.a. Foi assim, por escolha própria, que ela ficou.

Furiosus armou o recipiente Tenebrae para capturar o espírito da parteira. Uma sombra enegrecida, à cata de novas presas, saiu dali, mas nada pôde encontrar. Diante deste imprevisto, o anjo Shaitan acelerou os seus afazeres para finalizar a missão. Armou o caldeirão Diabolus, picou a raiz de valeriana cultivada nos campos do Senhor das Trevas, adicionou o plasma do mesmo, acionou o sistema vibratório, enfiando a espada Daemo no lugar apropriado, depois ligou o processo de maceração e, por fim, o de evaporação. Após alguns segundos, Furiosus tinha pó o suficiente para espargir sobre a cidade. Cismado, ele foi lá fora, olhou minuciosamente a rua, buscando movimentos suspeitos, fixou o olhar no manto negro e reparou certa inquietude nos outros anjos Shaitans.Ao adentrar a casa, não perdeu tempo: retirou o pente da arma, removeu as balas, inseriu nelas o plasma do Senhor das Trevas e as fechou, recolocando-as no pente e montando a arma novamente; destravou a pistola e guardou-a  no coldre. Sabia que o anjo Hesediel não tardaria a chegar com a sua protegida. Ao pensar nisso, uma gota de suor escorreu do seu rosto. Iratus, atento aos seus movimentos, percebeu, e sentiu o mesmo medo, porém, a sua sudorese era nas mãos.  

ApocalipseWhere stories live. Discover now