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O coração do rapaz havia parado de bater. O curandeiro continuou comprimindo-lhe o pulso e manteve os olhos fechados. Agora é que seu trabalho começava. Concentrou-se naquela vibração sutil e inaudível, a linguagem secreta das leis naturais, responsável pela transmissão do calor, pela formação das nuvens e pela morte. Era ali que precisava intervir.

A única vela acesa no cômodo apagou.

Dois gritos contidos de surpresa: o pai e a irmã pequena. O curandeiro podia sussurrar-lhes à alma para que se acalmassem, mas não queria dividir sua atenção. O único murmúrio que tinha emitido fora um pedido de busca; se tivesse mexido os lábios, bem pareceria um padre de verdade com uma prece. Mas aquele era um murmúrio que somente as leis naturais podiam ouvir; não eram palavras vazias e ele não precisava de fé.

Aguardou um tempo para que sua mensagem pudesse ser recebida. O mais difícil daquela arte era ser surdo. Embora pudesse usar a Linguagem, ele era incapaz de ouvir a resposta, somente sentir os seus reflexos no ambiente. Assim, quando julgou ter esperado o suficiente, enviou a segunda mensagem; só que dessa vez não era um pedido, era uma ordem.

Aguardou mais um pouco. Seus dedos sentiam o calor se esvaindo do corpo do rapaz. Emitiu outra ordem. E então um conjunto delas. Nenhum espasmo, apenas frieza. A insegurança logo se transformou em decepção. Emitiu uma última ordem, já fraca. Os dentes trincaram.

— Padre? — era a mãe.

O curandeiro abriu os olhos e percebeu que o aperto sobre o pulso do rapaz estava tão forte que sua mão tremia. Susteve-o devagar. Expirou com força e ergueu os olhos. Do outro lado da cama, o pai chorava agarrado à irmã pequena enquanto a mãe tinha o bebê nos braços e encarava o curandeiro, séria.

— Descul... — A tensão no maxilar era tamanha que chegou a estalá-lo. — Desculpa. Parece que o Grande Arquiteto tem outros planos para o seu filho.

O queixo da mulher franziu, sua fé desmanchada em frustração. O pai soluçou. O curandeiro levou uma das mãos à testa do rapaz e mexeu os lábios ao acaso, sem se preocupar em formar palavras.

— A alma dele descansará em paz — disse por fim. Aquilo era patético. — Sinto muito, minha senhora, meu senhor. — Seu tom era mais frio do que convinha.

A mãe colocou o bebê ao lado do corpo inerte e enlaçou ambos em um só abraço. O curandeiro afastou o olhar da cama e só então percebeu a mulher encostada ao batente da porta. Era a sobrinha do donatário. Trazia os lábios apertados e a testa enrugada, mas assim que foi avistada, meneou a cabeça.

— Irei deixá-los ter seu momento. Sei que é importante. — Levantou-se e contornou o leito e a família. — Voltarei em breve.

A mulher recuou do batente, ele atravessou o umbral e fechou a porta devagar.

— Sinto muito, você parece decepcionado. — Ela estava de pé no meio da sala, os olhos negros úmidos, a voz baixa.

— É difícil errar quando se faz o que faço, e mais difícil ainda é aceitar o meu erro — mas aquilo era muito mais que decepção. — Lido com questões delicadas.

— Mas como você sabe que errou, padre? Não és apenas um instrumento da vontade divina?

— Só que continuo sendo uma pessoa, tenho qualidades, defeitos e desejos. E eu queria ser capaz de salvar todos eles, senhorita Amáguila; não posso deixar de me sentir impotente quando não consigo.

Ah, como as verdades são frágeis. Não que fosse uma surpresa, não quando elas fluem por um idioma que permite manipular as palavras com tanta facilidade. Qualquer mudança, qualquer acréscimo, qualquer omissão podia transformar uma verdade tímida em uma mentira completa. O que ele havia dito, no entanto, era uma meia-verdade.

— Tudo bem, padre. Não há erro, ninguém vai lhe culpar por nada. — Ela, então, puxou um lenço do bolso e limpou os olhos.

— Com todo respeito, senhorita, mas você conhecia o rapaz?

— Só de nome... quer dizer, essa é uma vila pequena. — Ela forçou um sorriso. — É sempre triste quando um dos nossos se vai, ainda mais tão cedo. Ele tinha somente três verões a menos do que eu.

O curandeiro apertou os lábios e assentiu; era isso o que as pessoas comuns fariam para evitar a complexidade da situação, não? Fraco e patético.

— Bem... meu tio pediu para avisar que ele estende sua hospitalidade a você durante o tempo que precisar. É sempre bom ter um discípulo da Fé entre nós.

— Agradeço a generosidade, seu tio é um bom homem.

— É, eu gosto de pensar que sim. — Forçou outro sorriso. — E pode deixar que eu cuido da situação agora. Tudo bem se você for até a praça? Uma arcanista chegou à vila a pouco; ela parece preocupada e quer conversar com um padre, perguntou se havia um por aqui.

— Esse lugar é sempre movimentado assim, senhorita Amáguila?

A pergunta pegou a mulher de surpresa.

— Na verdade, não muito.

O curandeiro quase sorriu. "Cuidado, senhorita, verdades são frágeis." Mentiras tinham sua beleza, eram uma espécie de magia artificial, criada pela sociedade ao invés dos deuses. De que outro modo ele poderia estar ali? Afinal, ele não era um padre, nem mesmo um curandeiro.

Um Anseio pelas Artes ProibidasWhere stories live. Discover now