3 - parte 3

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Duas horas depois, eu me sentia muito melhor. Estava deitada em minha cama, medicada e calma. E ouvia os passos de Christopher na cozinha. Ele não aceitou ir embora depois de me ajudar a injetar o remédio. Colocou-me na cama, saiu do quarto mantendo a porta aberta e andava de um lado para o outro. Fez alguns telefonemas, gritou com algumas pessoas e em nenhum momento sentou-se, ou se acalmou.

Consegui me levantar sem problemas e apareci na cozinha, sendo seguida de perto por seu olhar avaliador enquanto ele encerrava uma ligação.

— Você já deve ter feito uma senhora caminhada apenas nesta cozinha — comentei. — Está tudo bem?

Ele não respondeu e quando olhei em sua direção, me encarava confuso com o celular na mão.

— Você quase morreu ao meu lado no carro. Você não respirava, perdeu a cor, seu pulso estava fraco e está me perguntando se estou bem? O que aconteceu? Você nem parecia assustada, enquanto eu estava me segurando para não morrer antes de você.

Sorri e bati a mão num banco giratório da bancada, ele seguiu meu comando e sentou-se ali, deixando o celular sobre a bancada. Ele acendeu com o gesto e pude ver na tela a foto da morena bonita que ele estava espiando no cemitério. Aparentemente, ela era mais do que uma conhecida.

— Não foi nada demais. Isso acontece quando sinto emoções muito fortes. E obrigada por me ajudar, de novo.

— O que aconteceu lá dentro? O que a fez sofrer a ponto de ficar daquele jeito?

— Você seria o diário mais belo que alguém poderia ter, mas não quero me abrir assim com você. Não somos amigos.

Ele se surpreendeu, arregalando os olhos, mas sorriu em seguida. Levando minha resposta como um jogo.

— No momento, não tenho interesse em ser seu amigo... — arrastou a última palavra observando meu corpo e completou: — apenas. Mas você está sozinha agora e eu sou sozinho. Não vai fazer mal conversarmos.

Neguei com a cabeça tentando disfarçar meu rosto em chamas pela maneira como ele adicionava malícia a cada conversa casual.

— Imagino que a vida do seu noivo na prisão não esteja sendo uma experiência maravilhosa. Seria possível que ele descontasse isso em você?

— Seria plausível — defendi-o.

— Seria injusto.

— Eu mudei a vida dele. Se ele não tivesse me conhecido, estaria morando na capital, no emprego dos sonhos, mas ele deixou tudo por mim. É a minha irmã quem está morta e só estão acusando-o do crime, porque era o homem mais próximo a ela. E não, ele não me culpa com todas as letras, mas não posso condená-lo por me culpar um pouco que seja, afinal de contas, toda essa merda em sua vida tem algo a ver comigo! — desabafei segurando as lágrimas e imediatamente me perguntei porque havia dividido isso com ele. Eu não havia dito sobre a culpa que eu sentia nem mesmo para a pedra, que naquele momento representava Liz.

— Entendo o que você sente, mas Ellen, ninguém é responsável pela cruz de ninguém. Esta é uma lição que estou aprendendo à duras penas. Este era o destino dele e se não fosse através de você, então seria por outro motivo, mas é a cruz que ele tem que carregar. Assim como você tem a sua, e ela não é culpa de ninguém.

Aproximei-me dele, digerindo suas palavras e compreendendo-as. Segurei sua mão sobre a bancada e não tive coragem de olhar em seus olhos. Os meus estavam cheios e eu odiava aparentar fraqueza diante de qualquer outra pessoa.

— Você carrega muita culpa?

Ele assentiu.

— Muito mais do que posso suportar, às vezes. Mas esse peso não me faz ser uma pessoa melhor, se é o que está pensando. Ele me vitimiza. Me faz sentir mais raiva e ódio. Mesmo que eu saiba que não há mais nenhum culpado além de mim.

— As pessoas não melhoram porque sentem culpa pelas coisas ruins que fizeram, melhoram por consertá-las.

Ele afastou a mão da minha e levantou-se, conferindo o visor do celular.

— Eu pedi algo para jantarmos, espero que goste. Deve estar chegando.

Nós comemos a pizza que ele pediu, na verdade, ele a comeu quase inteira, mais parecia uma draga e acabamos brincando sobre isso, ele disse que alimentava toda sua culpa com comida. Eu estava curiosa para saber mais sobre sua vida, sobre o que havia feito, porque se sentia sozinho se tinha mais irmãos, porque não morava com um deles, quem era a mulher na tela de seu celular e de quem era o bebê que ela esperava se não era dele. Tinha um milhão de perguntas, mas quando fiz a primeira delas, ele me lembrou gentilmente:

— Você disse que não somos amigos. E por mais linda que você seja, e você é mesmo espetacular, não estou em busca de um diário.

E assim, vítima de minhas próprias sentenças, não pude perguntar mais nada, mesmo achando que ele precisava falar. Assistimos um filme de luta que eu mal prestei atenção, e quando finalmente acabou, procurei um jeito de dispensá-lo. Ele havia me ajudado, de novo, e eu não queria ser grossa.

— O filme acabou! Você já pode ir embora! — gritei assim que li os créditos subindo. Então percebi que soei grossa demais. — Sinto muito. Quis dizer que está tarde e estou com sono, e sou muito grata por você cuidar de mim mesmo não sendo meu amigo, mas... — Ele sorria e me peguei sorrindo de volta. — Quero ir dormir agora, por favor.

— Você não conhece a palavra sutileza. Mas tudo bem, você parece cansada, está mesmo tarde, acho que devemos ir dormir.

Arregalei os olhos imaginando a situação que ele criaria e o pânico em que eu entraria até explicar a ele que não o havia convidado para dormir comigo.

— Cada um na sua cama, por que está com essa cara? Você leva as coisas com maldade, bela Ellen, que coisa mais feia!

Apontei para a porta e ele me deu um beijo demorado na testa antes de pegar suas coisas e afastar-se. Piscou para mim antes de sair, conferindo-me dos pés à cabeça, apenas para não perder o costume, e foi embora.

E mais uma vez, senti-me confusa com minha reação a ele. Eu me abri sobre algo que pensei que jamais falaria em voz alta, e fazia isso com mais frequência do que gostaria perto dele. Não queria que fôssemos amigos, éramos patrão e empregada, devíamos nos respeitar como tal e sermos apenas isso, mas com ele não funcionava assim. Eu olhava para ele e tinha vontade de conhecer suas lutas, de acalmar suas feridas, e ele me parecia tão machucado! E por mais que me assustasse abrir-me com ele, como estava fazendo, me sentia melhor depois, porque ele não me julgava, não me olhava com pena, não gostava de mim por obrigação.

Ele havia falado sobre a culpa que carregava e como sentia raiva e ódio, e ao mesmo tempo, me entendia e ouvia, e era tão atencioso! E eu estava cada vez mais envolvida na necessidade de desvendá-lo. De conhecê-lo. Bom ou mau? Quem afinal era Christopher Becker?

SACRIFÍCIO - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora