0.4 Corvo

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"Corvo: na Mitologia Grega, o Corvo era dotado de poder a fim de conjurar a má sorte. O corvo simboliza a morte, a solidão, o azar, o mal presságio."

- luke -

"A minha vida é como um cigarro. Quanto mais avança, mais se limita a cinzas." "Que sombrio."

Eu refletia imenso em voz alta na esperança de ter a minha voz levada pelo sopro do vento, porém o Calum afinava os ouvidos e tomava atenção a tudo o que saía dos meus lábios confusos. "É desta que aceitas o convite da Danielle para a festa em casa dela?" questionou o Calum, esperançoso. "Não sei. Talvez sim, talvez não."

Era incomodativo ser convidado por uma pessoa que afirmou de pulmões cheios que sou um destruidor de vidas para uma festa onde irão estar outras inúmeras pessoas que afirmaram o mesmo. Algumas pior. "Parece que ela já se esqueceu do que lhe fizeste no ano passado. E às amigas." sorriu o Calum, sarcasticamente.

Não me soava a correto reentrar na casa onde eu e a Danielle fizemos coisas obscenas que nunca deverão sair daquele quarto (e cozinha); não me soava correto ela encarar o rapaz que acabou com ela na festa de anos dela, onde estavam cerca de 200 pessoas que me ouviram chamá-la de 'cabra superficial e desesperada'. Fui vítima do adjetivo 'nojento' durante um ano. Não sei a que propósito a insultei dessa maneira, eu já estava bastante bêbedo, mas sei que tudo começou quando ela decidiu proclamar aquelas palavras que tanto custavam entrar meus nos ouvidos: 'amo-te'. Não eram propriamente dos primeiros verbos no meu dicionário; aliás, não fazia sequer parte do meu dicionário. Amor não era algo ao qual eu atribuísse muito sentido, pelo menos por enquanto. As pessoas são capazes de dizer que amam alguém por coisas demasiado banais, como por lhes irem buscar um copo de água, por exemplo. Mas eu, apesar de não sentir nada, quando via uma oportunidade de me divertir, aproveitava-a. Eu era uma pessoa horrível; um filho da mãe egocêntrico e desprezível.

'Na mitologia grega, Narciso era uma figura do território de Téspias, Beócia, famoso pela sua beleza e pelo seu degradante egocentrismo.' Eu era um narciso. Um pedante. Um corvo. Um corvo, símbolo da solidão, da má sorte, e, no meu caso, do nojo. Eu tinha um vazio dentro de mim que queria a todo custo ser preenchido; a cada corpo sedutor e cara atraente, eu via um passo que me poderia aproximar desse preenchimento, mas sempre terminei no engano. Eu fazia sexo com essas raparigas, elas faziam tudo o que eu quisesse, andávamos juntos algum tempo, e eu acabava por as deitar fora, com o vazio tal e qual como estava no início, magoando, devorando-me lentamente. Um corvo. Um guerreiro da solidão.

"Talvez se queira ter esquecido." retorqui, fora de tempo. Talvez a Danielle quisesse um pouco mais de mim, e eu não negaria a intimidade com o seu corpo esbelto. Talvez fosse ela o pedaço de mim que estava em falta e eu não tivesse percebido mais cedo. "Só há uma maneira de saber. Vai à festa."

Era impossível arranjar uma bebida. Era impossível mexer os pés. Era impossível respirar. A casa da Danielle estava atulhada de gente; já tinha perdido o Calum e só tinha a Danielle sempre perto de mim. Ela olhava-me com desejo; obviamente estava a ignorar o que havia acontecido na última festa em que estive.

"Estás a gostar da festa?" ouvi a voz familiar que me perseguia. "Não posso dizer que não, apesar de não me conseguir praticamente mexer." "Tenho saudades de 'nós'." "Foram bons tempos." "Podíamos repetir. Podes passar cá a noite." piscou-me o olho e seguiu caminho. Uma rapariga tão simpática deixar-se apanhar pelas garras de um narciso como eu era eticamente errado, mas não era eu quem ditava as leis do universo. Deixei-me ficar pela festa até bem tarde; eu havia aprendido a reprimir o sono que poderia, eventualmente, surgir, especialmente em fins de semana. Mantive-me pelo sofá do enorme salão aveludado, de paredes cor de champanhe e chão de madeira coberto por tapetes encarnados, com várias bebidas em mão, até os últimos convidados abandonarem a casa.

"Restaste tu?" Ela sorriu de forma muito pouco sedutora. "Parece que sim." Ela sentou-se ao meu colo e beijou-me de forma selvagem, esfregando as mãos pelo meu torso. Ela acreditava que eu sentia o mesmo desejo que ela obviamente transmitia, mas nem por sombras. Ter a Danielle ou ninguém ao meu colo, a esfregar a sua intimidade em mim, guiando-me até ao quarto conforme removia as roupas de ambos e mordendo o lábio inferior, sabia-me ao mesmo. Não havia já nada na Danielle que me motivasse. Ela continuava o mesmo ser aborrecido e fútil; ela não me preenchia.

Acordei pela manhã, seriam cerca de 11 horas. Uma cabeça coberta por cabelos castanhos ligeiramente ondulados cobria o meu peito ebúrneo e uma mão macia pousava na zona inferior do meu abdómen. Saltei da cama confortável coberta de lençóis e cobertores de tom rosa, vesti o que estava espalhado pelo chão da casa e saí, absolutamente ciente de que ali eu não encontraria o que precisava.

Cambaleei, ainda meio intoxicado, até casa para encontrar apenas um pai muito pouco receptivo à minha presença. "A mãe?" perguntei sem olhar o seu rosto. "Foi visitar a tua tia. Onde andaste?" "Isso nunca te importou, não sei porque há-de importar agora." Subi as escadas que guiavam até ao meu quarto ao som de palavras lançadas para ar pelo meu pai. Quem não souber das inúmeras histórias que rondam a minha família, crê que eu estava apenas a ser um adolescente revoltado com a vida e com pais que, aparentemente, não o entendem. Não, esse não era o meu caso. O meu pai não poria sequer uma unha no fogo por mim; a pouca confiança que ele depositava em mim e a ainda menor atenção que ele me dava era mais que motivo para não querer olhar a sua face frustrada. Eu sabia perfeitamente que a última coisa que o meu pai queria era estar preso numa pequena cidade americana com um filho e uma esposa às costas, por mais que mo tentassem ocultar. Ele tinha imensos sonhos e planos, mas a minha mãe engravidou muito cedo, prendendo o meu pai numa rotina familiar e vulgar. Ninguém o obrigou a foder a minha mãe, ele não tem que culpar mais ninguém a não ser a si próprio, porém eu, o único que era forçado a passar muito tempo dentro daquelas quatro paredes sufocantes, era o alvo das explosões de frustração do meu pai. A minha mãe passava pouco tempo em casa, assim que eu era a vítima disponível dos ataques do meu pseudo-pai.

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N/a: hello, espero que estejam a gostar até agora. Esta história vai alternar entre o ponto de vista da Iris e do Luke (sempre que for o do Luke, escrevo no início, como fiz neste capítulo). Continuem a comentar e a votar, caso gostem, e muito obrigada por lerem!

p.s. tinha-me esquecido que ia começar a dedicar os capítulos oops; dedico este capítulo à noonebutclifford porque o comentário dela fez a minha semana, muito obrigada :-)

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