Edeline

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A casa era antiga, com as janelas velhas já ensaiando cair na grama amarelada do jardim. Requisitava uma boa mão de tinta na cerca baixa e na fachada, além de um pouco daquilo que as pessoas chamavam de toque feminino. Quem olhava se sentia triste pela aparência decadente. Não demonstrava nenhuma gota de cuidado, chegando a parecer estar abandonada. Porém não estava.

A família se mudara há pouco tempo. Não queria ter escolhido exatamente aquela parte do subúrbio, muito menos aquela casa que não era nem um pouco o que desejavam chamar de lar, mas as circunstâncias, a falta de capital para algo melhor e a pressa, os fizeram ficar com o que conseguiram: a casa longe do centro, meio acabada, meio inteira.

Os sapatos puídos foram colocados do lado de fora. A mulher arrumou o uniforme antes de calçá-los e bateu os calcanhares um contra o outro, limpando-os porcamente. Uma garotinha vinha correndo logo atrás e abraçou as pernas da mãe assim que a alcançou. A mais velha deitou os lábios sobre a cabeça vermelha e encaracolada da filha, um gesto cotidiano que fez a menina sorrir.

— Até mais tarde, mamãe. — Sua vozinha sonolenta provocou o riso da mulher.

— Até mais, Edeline. Acorde seu pai pra ele te levar pra aula. Não quero que chegue atrasada.

— Está bem. — Seus olhinhos se fecharam enquanto o sorriso tomava mais centímetros de seu rosto pálido. — Tenha um bom dia, mamãe.

— Você também, Ede. — Ela passou as mãos pela roupa mais uma vez e se distanciou, subindo a rua.

Edeline viu a figura esguia da mulher se afastar. Para a garota, a mãe ficava mais linda sob a pouca luz da manhã. Seus cabelos negros brilhavam e seus olhos cor de mel eram um pouco mais animados do que quando ela chegava em casa à noite. Se não estivesse já acostumada, Ede diria que a mulher que chegava sempre tarde era outra pessoa.

Enquanto a mãe corria para alcançar a parada de ônibus, a menina fechou a porta e subiu vagarosamente a escada até o primeiro andar. Os degraus rangiam sob seus pés pequenos e ela se divertia com o som assustador de casa mal-assombrada. Caminhou até a porta entreaberta do quarto dos pais. Karl dormia esparramado sobre a cama de casal.

Ela empurrou a porta e de imediato sentiu o odor cálido e alcoólico do lugar. Precisou abrir as cortinas e a janela para amenizá-lo e fazer com que o ar morto e pesado escapasse. Depois, sentou-se do lado do pai e cutucou sua bochecha com o indicadorzinho.

— Papai... — sussurrou da forma mais doce que conseguiu. — É hora de acordar, papai.

— Agora não, Ede. — Ele virou o corpo para o lado contrário e se aninhou sob o cobertor suado. Edeline sentou-se sobre as costas do pai.

— Eu tenho aula hoje, papai. É meu primeiro dia.

— Peça pra Nelly te levar.

— Mamãe já foi trabalhar. Ela pediu pro senhor me levar.

Ele virou o rosto para a criança e encarou demoradamente a filha. Seus olhos escuros estavam vagos como de costume, como se a criança que encarava não passasse de um espectro invisível. Edeline não entendia por que eles eram sempre assim, sabia que era por conta da bebida, mas ainda era nova para compreender e temer aquilo.

— Então me espere lá embaixo que eu já vou.

— Vou preparar seu café da manhã! — Levantou-se e desceu de novo.

A fragrância da cozinha era quase tão repulsiva quanto a do quarto dos pais. O mofo empestara o ambiente e nem de longe parecia um lugar saudável para realizar as refeições. Comida ali quase não existia: as prateleiras clamavam por um pano limpo e produtos recém-comprados; as estantes pareciam esquecidas e silenciosas, guardando os segredos do abandono; alguns restos se espalhavam pelos andares da velha geladeira à moda antiga. Um saco de pão de dois dias atrás se apoiava timidamente em uma garrafa térmica de café que Nelly aprontara antes de sair.

Ede tirou a metade de um pão, passou um pouco de manteiga e o colocou em um prato sobre a mesa.

O pai entrou massageando as têmporas e murmurando algo que a criança não conseguia entender. Pelo tom arrogante, parecia reclamar como de costume.

— Já tá pronta pra ir? — Karl indagou enquanto mordia o pão e bebia o café direto da garrafa, antes que a filha tivesse a oportunidade de lhe estender uma xícara.

— Sim, senhor. — Ela respondeu torcendo o nariz.

— Vá esperar lá fora, eu só vou colocar uma camisa e já vou.

— Sim, papai. — Edeline agarrou a pasta da escola. Correu até a porta, desceu a es- cadinha carcomida e ficou esperando o pai no gramado. Seus pés se distraíam chu- tando os tufos de erva daninha, pouco se preocupando com a sujeira que se acumulava nas pontas dos tênis.

Ele demorou a aparecer. Vestia a camisa suja que usara no trabalho no dia anterior e vinha andando torto, com a mão esquerda na cabeça e a direita tentando equilibrar o corpo.

— O senhor está bem?

— Sim, sim, sim. — Ele a empurrou pelo ombro. — Vamos logo, garotinha.

Juntos subiram a rua. Karl Stein era um homem alto, de corpo esguio e cabelos ruivos frequentemente bagunçados. Aparentava ter mais de trinta anos, mas ainda estava para completar seus vinte e seis. Não tinha um emprego fixo, trabalhava onde podia e quando achava algum lugar que o aceitasse. Não era o tipo de homem que inspirava confiança. Nunca foi, e os acontecimentos da vida só pioravam sua situa- ção.

Edeline era bem diferente do pai, não fisicamente, já que nisso ambos combinavam, mas era mais alegre. Seus olhinhos brilhavam constantemente, como se sempre estivessem felizes. Tinha apenas sete anos de idade e, desde cedo, acostumou-se com a situação financeira da família. Por mais que seus desejos infantis a deixassem tentada, ela se mantinha quieta. Não costumava falar muito, na verdade, mas era educada e divertida quando se aventurava com as palavras.

Apenas uma coisa na vida atiçava seu desejo: Livros. Nelly sempre juntava alguns trocados no final do mês e passava em algum sebo no caminho do trabalho para comprar mais livros para a filha. A mãe se sentia orgulhosa pela criança adorar tanto a leitura. Ede ficava imensamente feliz quando recebia um folheto que fosse. E Karl pouco mostrava se importar com o que a filha deixava ou não de gostar.

Era o primeiro dia da garotinha na escola nova. Quando chegara à cidade, ela estava longe de ficar contente por ter mudado e perdido as únicas amizades que demorou tanto para fazer, mas agora a ideia do desconhecido a alegrava. Queria saber logo o que o futuro a reservara, conhecer seus colegas de sala e fazer muitos novos amigos.
Karl a observava pensativo, quase triste, enquanto a criança pulava pelo caminho.

Dolls [Amostra]Where stories live. Discover now