CAPÍTULO XXIV

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A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da chácara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre feliz, mas geralmente quieto. Mais de uma vez buscara dissipar a sombra pesarosa que alguns erros do conselheiro acumularam na fronte da consorte. Haveria naquela casa uma geração de dores, destinadas a abater o orgulho da riqueza com o irremediável espetáculo da debilidade humana?

"Não, dizia ele consigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos abrolhos. A vida sensual do marido

produziu o infortúnio calado e profundo daquela senhora, que se foi em pleno meio-dia; o fruto há de ser tão amargo como a árvore; tem o sabor travado de remorsos."

Neste ponto chegava ao portão. Aí deteve-se um instante. O passo cauteloso e tímido de alguém fê-lo voltar a cabeça. Um vulto, cujo rosto não via, tão escuro como a noite, ali estava e lhe tocava respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pajem de Helena.

— Seu padre, disse este, diga-me por favor o que aconteceu em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não aparece; fechou-se no quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?

— Nada, respondeu Melchior.

— Oh! é impossível! Alguma coisa há por força. Seu padre não tem confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?

— Sossega; não há nada.

— Hum! gemeu incredulamente o pajem. Há alguma coisa que o escravo não pode saber; mas também o escravo pode saber alguma coisa que os brancos tenham vontade de ouvir...

Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permitia examinar o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A idéia de interrogá-lo passou pela mente do padre, mas não fez mais do que passar; ele a rejeitou logo, como a rejeitara algumas horas antes. Melchior preferia a linha reta; não quisera empregar um meio tortuoso. Iria pedir a Helena a solução das dificuldades. Entretanto, o pajem, como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, continuou:

— Nhanhã Helena é uma santa. Se alguém a acusa, acusa o bom procedimento dela. Eu lhe direi tudo...

Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pajem, contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se passos; era um escravo que vinha fechar o portão.

— Vem gente, disse Vicente; amanhã...

O pajem tateou nas trevas em procura da mão do padre; achou-a, enfim, beijou-a e afastou-se. Melchior seguiu para casa, abalado com a meia revelação que acabava de ouvir. Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; podia supor que o ato dele era menos espontâneo do que parecia; enfim, que a própria Helena sugerira aquele meio de transviar a expectação e congraçar os sentimentos. A interpretação era verossímil; mas o padre não cogitou de tal coisa. A ele era principalmente aplicável a máxima apostólica: para os corações limpos, todas as coisas são limpas.

A seguinte aurora alumiou um céu puro de nuvens. Estácio acordou com ela, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã lhe pareceu mais rumorosa e jovial; nunca o ar apresentara tão fina transparência nem a folhagem tão lustrosa cor. Da janela a que se encostara, via as flores de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e enviando-lhe, a ele, uma nuvem invisível de aromas; aspecto de festa e ironia da natureza. Estácio achava-se ali como um saimento em horas de carnaval.

Almoçou sozinho; D. Úrsula estava com Helena. Logo depois do almoço, recebeu uma carta de Mendonça, que, tendo ido na véspera a Andaraí recebera a resposta dada a todos, e mandava saber se havia moléstia em casa. Estácio respondeu afirmativamente, acrescentando que, posto não se tratasse de coisa grave, só o esperava dois dias depois. A resposta podia ser mais circunspecta; no estado em que ele se achava, pareceu-lhe excelente.

Helena ♦ Machado de Assis ♦ Caí no Enem!Where stories live. Discover now