Crime político

23 7 58
                                    


Aviso: gatilhos. Estupro, tortura e afins. Inspirado no período ditatorial.

— E a vagabunda, cadê? — perguntou assim que o homem entrou na sala.

— Lá embaixo, ainda viva. Ela jura que não sabe de nada — respondeu removendo a máscara. Tinha a face dura, sisuda. O olhar de quem já havia visto coisas demais, mas ainda assim era jovem. Não devia ter mais do que vinte e cinco. O que estava fazendo ali parecia ser uma piada sem graça, daquelas que a gente espera por uma risada que nunca vem.

Quando entrou pra polícia, achou que faria justiça. Achou que a sociedade era suja só por causa dos bandidos, por causa dessa escória que suja os becos e as ruas da cidade. Nunca tinha imaginado que seria a polícia a dona de crimes mais escabrosos. Quando os pais o incentivaram a entrar no DOI (Departamento de Operações Internas), achou que estaria fazendo um favor pra sociedade. Os opositores mereciam morrer.

Na verdade, não entendia muito bem o porquê daqueles guerrilheiros não concordarem com o Governo e simplesmente vestirem a camisa que lhes era dada. Ainda que não concordassem com o regime militar, deveriam ao menos ter amor pela própria vida e aceitar. Já havia dez anos de ditadura. Em oito meses havia mandado pro fundo do Lago mais gente do que podia contar, estava em um cargo de certo prestígio ali dentro por causa de um conhecido de seu pai. E era muito útil aos militares. Sempre fazia os rebeldes falar. Admitir seus crimes e lhes dava a sentença final: a morte. Sentia-se o próprio deus.

Mas nos últimos dias o sono era difícil. Constantes pesadelos que lhe atormentavam a alma. E desconfiava que tudo era por causa daquela filha da puta do mês passado. O nome era Carolina. Claro que não era o verdadeiro, aquilo ela não disse de jeito nenhum. Nem mesmo com os choques, as bofetadas, os estupros. Ah, ela era uma boa vadia. Mas não havia lhe dado informações que prestasse, só seus gemidos de dor enquanto ele a penetrava. Desconfiava que haviam a entregado virgem pra ele, mas não tinha certeza. Pouco importava.

— Por que você não me dá logo uma lista de nomes? — gritou em certo momento. Carolina estava nua em cima da mesa, o corpo em espasmos por causa da água gelada que lhe machucava a pele. Os lábios roxos de frio, o queixo tremia.

— Por que você faz isso? — sussurrou com dificuldade. Os grandes olhos castanhos encaravam-no pesados, cheios de dor. Engoliu em seco.

— Porque eu sigo ordens — retrucou seco. Ela precisava dar alguma informação, qualquer informação, sobre a guerrilha e ele poderia acabar com a dor. Mas Carolina sabia. Sabia que assim que foi pega, quando o filho da puta do Augusto a deixou pra trás, não sairia daquele lugar viva. Sairia num saco preto e seria jogada numa cova qualquer, ou no Lago. Diziam que os militares enrolavam os corpos com camadas e camadas de papel higiênico antes de jogar nas águas escuras. Era porque o papel ia encharcar e levar o corpo pro fundo. Viraria comida de peixe.

Quando viu os olhos de seu torturador, sabia que estava perdida. Ele a tornaria cinzas. Não sabia quanto tempo estavam naquele jogo jogado por uma só pessoa. Ele a maltratando, matando aos poucos, e ela aguentando firme cada investida. Roberta teria orgulho dela agora. Nenhuma palavra. E aquele filho da puta não fazia ideia de que ela era responsável pelas operações em Minas Gerais.

— Você acha que alguém merece morrer pelo que acredita? — indagou fraca, as correntes nas mãos chacoalhando junto com seu corpo. — Pelos ideais...

— Vocês morrem por burrice! — exclamou batendo as mãos na madeira da mesa. — Por que morrer por causa disso tudo? Por causa de gente que não tá nem aí pra vocês, por gente que entrega vocês nas nossas mãos!

Que tudo seja azulUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum