Procurara, conto dissera, Rosa Veado para rezar o respônsio; esta, porém, exigira dinheiro para comprar duas velas para o santo, luz sagrada, indispensável para o êxito do sortilégio, circunstância que ela não revelou a Luzia, por querer que o descobrimento do criminoso fosse devido, exclusivamente, à sua iniciativa.

Arguta rapariga, afeita ao contato do vício e do crime, a percebê-los por intuição, estava convencida da inocência de Alexandre, e julgava obra de malvados, a infamante imputação.

— Ele não tem cara de ladrão — dizia — Conheço pela pinta quem pega no alheio; e nunca me enganei... Não se me dava de apostar... Enfim, não quero condenar a minha alma, levantando falso a ninguém; mas... deixem estar que hei de desmascarar os safados, que não têm consciência para fazerem sofrer um pobre...

As reticências irritavam Luzia que, por sua vez, só pensava em deslindar o mistério.

— Ah! Se eu tivesse dois mil réis!... — suspirou Teresinha.

— Para que queres dois mil réis?...

— Para uma coisa que só eu sei...

E passaram-se dias.

Da frugal comida Luzia separava, todos os dias, uma porção que levava a Alexandre. Apesar dos remoques de Belota e dos encontros com Crapiúna, ela cumpria, pontualmente, o dever de visitar o preso e conversava com ele alguns momentos, por entre as grades da cadeia, uma grande sala, no andar térreo da casa da Câmara, onde estavam empocilgados mais de cem homens.

Alexandre não se conformara com a promiscuidade entre criminosos dos mais abjetos. Havia ali assassinos, condenados a penas máximas, envelhecidos naquele recinto miasmático; ladrões que narravam, com repugnante bravata, façanhas deprimentes; moços impulsivos, culpados de crimes passionais, cometidos sob a influência nefasta de paixões incoercíveis, e alguns idiotas, maníacos que apodreciam caquéticos, roídos de moléstias, vegetando, como plantas daninhas, conservados naquela sórdida estufa de podridão e de vício. No ambiente escuro da prisão cruzavam-se redes em todas as direções, umas sobre outras, paralelas ou atravessadas, todas sujas e nauseabundas. A um canto estava o barril d'água; noutro, a cuba do despejo; e, defronte do amplo portão, das quatro janelas largas, abertas para a praça, protegidas por dupla grade de grossos vergalhões de ferro, trabalhavam os sentenciados em sapatos, chapéus de palha e obras de funileiro.

Essas janelas eram o parlatório e o balcão dos negócios. Diante delas estavam, continuamente aglomerados, agentes de comércio, ou pessoas da família, mulheres, mães, irmãs ou amantes dos reclusos no ergástulo fedorento e imundo, que a piedade dos Comissários ia extinguir, construindo a penitenciária no morro do Curral do Açougue.

Dentro de dez dias de prisão, Alexandre foi acometido de fortes dores de cabeça e imensa fadiga física e moral. Privado de sol, a tez do rosto perdera o vivo colorido, fez-se pálida e baça; a barba e os cabelos castanhos pareciam pardacentos como erva crestada, e os olhos amortecidos, e encovaram nas órbitas roxeadas. Toda a sua pele estava seca e fria, coberta de descamação esbranquiçada, que lhe zebrava o corpo quando se coçava. Queixou-se ao carcereiro, ao Juiz da prisão, que era o Galucho, antigo cangaceiro, portador de um rosário de crimes.

— É assim mesmo — respondeu-lhe o facínora — Nos primeiros tempos, a gente estranha; fica banzeira. Depois se acostuma. Estou aqui há dez anos; ainda me faltam quatro e pretendo, se Deus não mandar o contrário, sair com forças para liquidar contas velhas. Olhe, moço, para essas dores de cabeça só há um remédio: sair, pela manhã, com a faxina...

Mas, a Alexandre repugnava o carregar a infecta cuba de resíduos e secreções, ligado a um criminoso por comprida corrente de ferro, atada ao pescoço pela gargalheira, fechada a cadeado. Mil vezes a morte, intoxicado no ambiente mefítico, à vida maculada pela infâmia, que lhe custaria alguns momentos ao ar livre.

Luzia-Homem (1903)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora