II

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O francês Paul — misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral, costumava vaguear pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens — trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de botânica e geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.

Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:

"Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça."

Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta tijolos.

Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.

Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.

— É de uma soberbia desmarcada — diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.

— A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona — murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes. — Aquilo nem parece mulher fêmea — observava uma velha. Alcoveta e curandeira de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...

— Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! — mandou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de joias de pechisbeque e fios de miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos.

— Não diga isso que é uma blasfémia — atalhou Teresinha loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.

— Por ela eu puno; meto a mão no fogo...

— Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira....

— Mas você não pode negar que ela viva no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moira de trabalho.

Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...

— Tu a defendes, porque és parceira dela...

— Antes fosse! ... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes. Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha,

Luzia-Homem (1903)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora