VIII

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Teresinha informara a tia Zefa do caso de Alexandre, procurando, com tortuosas e vagas digressões, amortecer o choque demasiado rude, e substituir a filha ausente, preparando o caldo, ajudando a velha a mudar de posição, e convencendo-a de tomar o remédio, que tinha um sabor mau de azinhavre.

— Deus te pague — repetia a velha, fazendo uma careta de repugnância e escarrando com ruído — e perdoe os teus pecados. Bem sabia que o teu coração é bom... Ai... o que te falta é cabeça...

— A minha sina é que não foi boa... — observou a moça com requintes de ternura e meiguice — Se a gente pudesse adivinhar; se soubera o que me havia reservado quando saí de casa...

— E Luza que não volta!...

— Se não fossem os cuidados estaria melhor, porque o puxado vai passando...

— É o remédio... Tome outra vez...

— Já estou encharcada de mezinha... Coitada da minha filha!...

— Descanse que ela não tarda aí...

— Pobrezinha! ... O dia inteiro, com uma triste xícara de café escoteiro.

Ao escurecer regressou Luzia. Vinha taciturna e triste, rendida de fadiga.

Tomou a bênção à mãe; apertou Teresinha contra o seio, numa demorada e silenciosa expansão de reconhecimento, e deixou-se cair acocorada à soleira da porta do quarto, em postura de desânimo, os cotovelos fincados sobre os joelhos e a cabeça apoiada nas mãos.

— Seu de-comer — disse-lhe Teresinha — está guardado...

— Não tenho fome...

— Ao menos uma xícara de café...

— Deixa-me descansar.

— E Alexandre, filha? — inquiriu a velha plangente.

— Está preso!... Levaram-no para a cadeia como um mal-feitor...

— Diz-me o coração — atalhou Teresinha — que ele está penando injustamente... Mas... deixem estar que vou farejar o ladrão... Conheço uma velha que faz a adivinhação da urupema e sabe rezar o respônsio de Santo Antônio. Não há furto que não descubra. Uma coisa é ver, outra é dizer. Parece que tem parte com o cão...Meu Deus perdoai-me...

— São abusões — murmurou a velha.

— Pois amanhã cedo vou atrás dela, da Rosa Veado, que mora na Fortaleza, nos quartos da Lianor, e vosmecê há de ver...

— Pode ir embora, Teresinha — disse-lhe Luzia, quebrando o longo silêncio — Você já fez muito por nós...

— Eu?!... Ai, gentes! Que grande incômodo!... Agora é que fico mesmo aqui ajudando. Durmo ali, na esteira, junto do jirau, ou em qualquer parte. Basta ter onde encostar a cabeça...

E, acendendo fogo num cigarro de papel amarelo, continuou contando casos maravilhosos da feitiçaria de Rosa Veado que, além dessa habilidade, era insigne parteira, muito cuidadosa, muito feliz.

Teresinha ficou. Passou a. fazer parte da família pois não tinha ânimo de abandonar as duas criaturas, repassadas de amargos sofrimentos, sozinhas naquela casa, sem uma alma condoída que as consolasse. Sabia quanto custava a privação súbita da companhia afetuosa de um ente querido; tinha a dolorosa experiência do abandono e das fatais consequências da orfandade do coração. Era quem cuidava da doente nas ausências de Luzia, muito preocupada no andamento do inquérito sobre o roubo. Às provisões que, escassamente, chegariam para mantê-las, ajuntava o pouco que podia conseguir: algumas gulodices, ovos, manteiga e açúcar, adquiridas por preços absurdos. Tomara a seu cargo os serviços da casa, menos os braçais, como rachar lenha e pilar café, porque era aberta dos peitos cuspia sangue sempre que abusava dos seus delicados músculos.

Luzia-Homem (1903)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora