1.1 - Sujo

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Jumping up on the floor, my head, is an animal...
Dirty Paws - Of Monsters and Men

Foi o grande branco que a trouxe, prenhe, e por isso eles tiveram que aceitar. Não era um filhote do Alfa, não foi ele quem a cobriu, e por isso era sempre deixada para trás. Só roía os ossos, só roía os restos. Se ficasse com fome, tinha que comer mato, ou caçar esquilos, ou viver dos restos. E quando eu vim pro mundo, estava sozinho, não tinha irmãos, não tinha nada, porque ela morreu parindo. Foi a velha que me lambeu e me limpou, e foi o Alfa que me jogou perto da corsa ainda quente, pra eu lamber o sangue. Era isso ou morrer de fome. O Alfa me chamou de Sujo. Não era branco como a neve, nem negro como a noite, eu era sujo, só sujo.

Saíram daquela caverna no mesmo dia, o Alfa me carregando na boca. Não era dele, mas ele não podia me jogar fora ou me comer, ele sabia que se fizesse isso, o grande branco iria acabar com ele, ia acabar com todos. O Alfa sabia que o grande branco viria ver a loba, e ele ficaria furioso quando a encontrasse. O Alfa não tinha medo de nada, fosse de humano, lupino ou felino, mas ele respeitava o grande branco, porque ninguém pode ir contra a vontade dele.

E do jeito dele, o Alfa me ensinou muito. Ele deixava bem claro que eu não era como os outros filhotes e me batia quando eu chegava perto pra brincar. Ele me abandonava no mato quando eu tinha fome e eu aprendi a caçar; Ele me jogava no rio quando a alcateia mudava de toca e eu aprendi a farejar, eu sempre achava o rastro deles; e ninguém brigava comigo, ninguém me mordia, ninguém me pisava, só o Alfa. E eu cresci rápido e cresci muito, e era muito mais forte do que todos os outros, inclusive mais forte que o Alfa, eu era diferente e ainda assim, por algum motivo peculiar, eu não era nada.

Até o dia em que os humanos nos encontraram. Eu não era mais um filhote, já era jovem, e o bando tinha saído para caçar. Agora eu andava atrás do Alfa, eu era sua sombra, era o escudo. O Alfa sabia que eu jamais seria alfa, mas sabia que enquanto eu estivesse ali, nenhum outro seria também. E se não tivesse ninguém para sucedê-lo, a alcatéia chegaria a um fim muito amargo. E foi durante a caçada que ouvimos o uivo, era um uivo diferente, agonizante e desesperador. Dentro de mim algo se agitou e eu não sabia o que era, eu cerrei as presas e rosnei, e todos fizeram o mesmo. Todos correram para a ponta do penhasco, e lá embaixo estava a fogueira junto com um monte de humanos. Eram caçadores.

O uivo foi de um lobo velho que estava enjaulado. Ele estava com a pata quebrada, a cabeça sangrando, o focinho ferido. Seu olho estava amarelado, já não enxergava mais nada. Seu uivo não foi pra chamar por ninguém, foi pra afastar, foi pra avisar que ali tinha perigo grave, que nenhum outro predador deveria chegar perto, porque o maior de todos os predadores estava caçando. Era o homem com seus barulhos ensurdecedores, com seu cheiro de terra podre, sem respeito por nada. A caçada da alcatéia acabou naquele dia. Sem nada pra comer, voltamos rápido para a toca, e dormimos todos com fome. E naquela noite eu sonhei.

Sonhei com o grande branco. Ele era como nós, mas também era diferente. Era branco como a neve, não era sujo como eu, e seus olhos eram como a venerável lua, alta e distante no grande escuro céu. Ele pulou de cima de uma rocha, e caminhou até chegar perto. Um pássaro grande voou baixo, deixando cair uma pena entre eu e ele. Ambos olhamos para a pena que saiu voando, com um vento barulhento. Quando o barulho do vento passou, percebi que ele olhava profundamente em meus olhos, e uma voz ecoava dentro de mim dizendo: Garou.

Quando acordei senti um cheiro estranho de lobo, lati e rosnei, nosso território estava sendo invadido. O Alfa acordou e tocou todo mundo pro fundo da caverna, não dava mais tempo. Ele juntou os outros jovens no fundo, me mandou pra frente. Não eram lobos invadindo, eram caçadores. O Alfa iria atacar junto com os velhos e eu, o resto era pra fugir. Então vimos as sombras, e das sombras apareceram os cheiros, e com os cheiros, vieram os homens vestindo as peles da última alcatéia abatida. Os homens usavam peles de lobo para se proteger do frio, mas também para mascarar o seu cheiro e conseguir mais peles. Um lobo sabe quando seu território foi invadido, e vai combater. Um lobo conhece o cheiro de humano e sabe que tem que correr. Antes lobo e homem viviam em paz, hoje não tem mais como saber quem é humano e quem é da terra. Se puder correr, corra. Se não puder correr, morda. Se eles estiverem dormindo e você quiser tentar a sorte, mate.

Quando os humanos fecharam a passagem da toca com suas sombras e seus corpos grandes, estavam com suas armas barulhentas e fedidas. E nós estávamos rosnando para eles prontos para atacar. O Alfa armou seu pulo, e o humano apontou sua arma. O Alfa sabia que seria o primeiro, e o humano também sabia disso, ninguém ataca antes do alfa, mas antes de qualquer coisa eu ouvi de novo aquela voz ecoando na minha cabeça e me deixando furioso. Eu saltei, antes do Alfa e do tiro. Eu recebi a primeira bala, e mordi o braço do humano. Eu não senti nada, ele sentiu minha presa arrancando o músculo do seu osso. Ele caiu no chão gritando, e eu abocanhei seu pescoço. Me lembrei do sangue da corça na minha língua, era um sangue doce. Soltei e vi os outros humanos com suas armas apontadas pra mim, tudo estava muito distante, então eu pulei de novo e derrubei outro caçador. Os outros lobos me seguiram e logo os humanos estavam correndo com medo, e o restante do bando fugindo também.

Um velho havia morrido, um filhote foi pisado e estava com a pata mancando, o Alfa estava sujo de sangue, não dava pra saber se era de lobo ou de homem. E o resto da alcatéia estava correndo para a terra que é ainda mais coberta por neve. Tínhamos que abandonar a terra com caça e viver onde a vida seria ainda mais selvagem... Bom, o bando teria, eu não. O Alfa me mandou voltar e encontrar o meu caminho, porque o meu caminho não era mais com aquela alcatéia. Agora que o homem havia invadido nosso território, eu tinha que encontrar o meu lugar, e viver a minha vida.

Ao contrário de todos, eu desci o morro enquanto os lobos subiam. O vento uivou nos meus ouvidos, e aquela palavra que eu escutei no sonho não saia de mim. Era uma palavra estranha, porque os lobos não se comunicam dessa forma. Não sabia o que era, mas sentia que era algo. Então, mais adiante, vi uma pena grande caída na neve. Eu corri para pega-la e o vento a levou pra longe. Eu corria, tentando seguir a pena flutuando com o vento. No fim ela me levou pra beira de um barranco, e antes de chegar no barranco eu senti o cheiro doce do sangue de humano, porque a memória ainda estava fresca, assim como o gosto. Meu pêlo se eriçou e eu pensei em sair correndo, mas o cheiro, aquele cheiro, aquilo me fez ficar e ir ver o que estava acontecendo. E eu vi o maior lobo de todos.

Era maior do que eu, era maior que um humano, era maior ainda que um urso, e estava só em duas patas. Os humanos estavam acuados no barranco com suas armas prontas pra atirar, mas não atiraram. Eles estavam com o cheiro do pavor, o cheiro da presa que sabe que vai morrer ali. Tinha urina e excremento misturados naquele cheiro, tinha sangue de humano espalhado no chão atrás do grande lobo. Ele olhou pra mim, e eu olhei pra ele, seus olhos não eram como a lua, mas eram poderosos. Suas presas eram grandes, mas ele não era o grande branco, sua capa era escura, sua barriga era clara, ele não era sujo como eu. E quando ele ergueu a sua pata, suas garras eram as mais afiadas e assustadoras de todas. Ele rasgou os dois homens com uma patada só. E então virou as costas, pronto pra partir.

Eu não consegui me mexer, eu era agora só um filhotinho esperando o Alfa me dar um comando, me jogar na neve, me dar uma patada. Ao invés disso, o grande lobo olhou pra mim por cima de seus ombros e disse: Vem, Garou! E eu o segui...

Sujo, dos WendigoOù les histoires vivent. Découvrez maintenant