1.2 - Transformação da Carne, Alquimia da Alma

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Hello darkness, my old friend,
I've come to talk with you again,
Because a vision softly creeping,
Left its seeds while I was sleeping,
And the vision that was planted in my brain
Still remains
Within the sound of silence...
Sound of Silence - Simon and Garfunkel

- Vc tem nome garoto? - Perguntou o grande lobo, num rosnado feroz. Aquela linguagem, era muito parecida com a que ecoava na minha mente, mas eu não sabia responder. Tudo o que eu pude fazer foi latir e rosnar de volta, eu estava assustado, mas ele me conduzia para fora da floresta como se eu estivesse sendo puxado pelo focinho. Ele me fascinava do mesmo jeito que me assustava, porque era grande, porque era feroz, mas principalmente, porque me era familiar.

E antes que eu pudesse notar, logo ele estava seguindo ao meu lado. Ainda era maior do que eu, mas agora estava em quatro patas, lado a lado. Então eu pude entender.

- Sujo! O Alfa me chama de Sujo. Era como se comunicar com aqueles que eu havia deixado para trás. Na verdade, não havia segredo, só precisava haver vontade.

- Eu sou Pedra Ligeira. Logo você vai conhecer os outros, não se assuste...

Chegamos numa grande clareira e vários lobos apareceram para nos receber junto com alguns humanos. Tudo era muito confuso, como se eu estivesse sendo esperado. Pedra Ligeira apontou para o centro, lugar que eu deveria chegar sozinho, pois ele parou junto com os outros que formavam um grande círculo. Um lobo velho veio ao meu encontro, tinha o pêlo acinzentado e grosso, havia visto muitas caçadas, muitos invernos. Tudo era muito ritualístico, aquele momento havia sido preparado. O Velho me olhou profundamente, emanando sabedoria.

- Preste atenção garoto, vou mostrar sua verdadeira natureza, o presente que a Grande Mãe Terra reservou para nós, suas criaturas. - Disse o velho, rosnando para mim, mas também para todos os outros lobos.

E ele foi crescendo, sua carne se transformando, seus pelos aumentando de tamanho assim como sua mandíbula e suas garras. Seu corpo emanava calor e poder. Foi crescendo e então ficou sobre duas patas apenas e uivou, e todos os outros uivaram também. Olhar para cima era quase impossível por causa do sol reluzindo atrás daquela figura alta e poderosa. Em seu pelo haviam tranças de humano, ossos amarrados, pedaços de galhos pontudos e afiados, garras de aves e presas de outros animais.

- Agora, criança, você verá que nossa natureza também é humana... E com um rosnado alto, que mais parecia um ganido de dor, ele começou a diminuir de tamanho.

A neve a sua volta derretia, e ele começou a tomar a forma de um humano. Seus pêlos foram voltando pra dentro do corpo, e dele saíam roupas, mas não eram roupas dos humanos caçadores que eu havia visto, eram diferentes. Em suas roupas, estavam presas aquelas mesmas coisas de sua forma gigante. Ali estavam os galhos, as presas, os ossos, os colares. Seu cabelo cresceu, sua face era marcada pelo tempo. E os olhos ainda brilhavam com certa ferocidade. Quando se recompôs, o velho respirou fundo e disse:

- Seja bem vindo a Cabana dos Lobos, garou. Eu sou o Andarilho entre os Mundos, sou o mais velho e o mais sábio de todos neste lugar. E sou um líder aqui também. E logo os espíritos irão me contar quem você é, e qual é o seu destino. E mais logo ainda, você aprenderá a ser um troca-peles como muitos daqui.

E dito isso, ele se voltou para todos no círculo...

- Eis mais um troca-peles como muitos de nós, irmão da raça dos lobos que agora fará parte de nossa cabana e nossa tribo. E que o Grande Wendigo nos abençoe com mais esse irmão.

Pedra Ligeira se aproximou, enquanto todos os outros se afastaram, ele me indicou uma trilha e por ela seguimos. E logo chegamos a um campo com tendas e cabanas. Ali, humanos andavam de um lado para outro, cumprindo suas tarefas diárias. Alguns cortavam lenha, outros carregavam água. Haviam círculos de humanos conversando ao redor de fogueiras, e eu não conseguia sentir hostilidade em nenhum deles. Todos ali tinham o cheiro do mesmo bando, todos os humanos cheiravam a lobo. Pedra me indicou uma tenda e disse que ali eu encontraria comida e descanso. Dentro da tenda uma humana me esperava. Ela me deu carne e me indicou um lugar para eu deitar. Eu estava faminto, fazia muito tempo que não comia nada. Depois de lamber minhas feridas, deitei e adormeci, mal ouvindo as palavras daquela mulher.

***

O vento uivava na noite, uma noite escura, densa e fria. Eu sai da tenda e entrei na floresta. Havia uma parte alta, que me mostrava um rio sinuoso correndo floresta adentro. Era estranho, eu não me lembrava daquele rio quando chegamos ali. Então eu parei e fiquei olhando, sentindo o vento agitar meu pelo. Mas eu não tinha mais pelo, eu era um humano, vestindo as roupas que eu vi nos humanos que haviam me recebido. E lá em baixo eu via luzes, eram tochas, muitas delas, carregadas por muitos humanos. Eles se aproximaram do rio e suas tochas refletiam na água, mas a cor do fogo refletido era escuro, arroxeado. O rio tinha a forma de uma grande serpente, uma serpente com chifres retorcidos e enormes. E sem avisar, o rio se levantou porque agora era uma serpente real, gigante, que veio na minha direção, e eu rosnei em minha forma humana, mas essa serpente era muito maior do que eu podia sequer lidar.

Foi quando os céus piaram e relampejaram e foi ensurdecedor. Eu vi o céu bater asas, porque o céu inteiro era um pássaro gigante, azul da cor da noite, e as estrelas estavam estampadas nas penas deste pássaro. Suas garras poderosas agarraram a grande serpente e voaram para o alto. A serpente se contorcia de dor, porque o pássaro estava rasgando seu couro e escamas com as garras, relâmpagos trovejavam no corpo da serpente saídos das garras da imponente ave. Ele piou mais uma vez e arremessou a serpente longe, para além da borda do mundo.

E quando a serpente foi arremessada, o céu começou a clarear, o vento parou de uivar, e o frio, não era mais um frio cortante de medo. Não havia mais pássaro, não havia mais humanos, nem tochas, nem rios, nem serpentes. Eu olhei para o chão, para meus pés descalços e no meio deles, havia uma pena. Uma pena grande que eu peguei com minhas mãos de forma desajeitada e olhei com curiosidade.

- Aceite esse presente, criança, pois eu sou seu guardião. - Disse uma voz que ecoava pelo céu inteiro. - E assim como eu te honro com uma parte de mim, eu exijo que dedique uma parte de sua essência para que a troca seja perfeita.

Então eu fiz. Eu uivei e todo o mundo vibrou. Eu uivei e meu pelo cresceu novamente, e meu corpo inteiro doeu, como se eu não coubesse mais na minha pele. Eu não segurava a pena, ela é que estava atraindo meus dedos e mantendo minha mão fechada. Eu cresci e minhas presas e garras cresceram também. Agora eu era tão poderoso quanto os grandes lobos que eu havia visto. Eu senti a presença do Grande Branco como se ele estivesse me observando de longe. E depois de grande, com uma garra eu rasguei meu peito e de dentro dele tirei meu próprio coração pra fora. Eu não sentia dor, só sentia o frio do gelo no meu corpo.

- Grande pássaro que é o céu inteiro, eis a parte da minha essência que pedes e eu entrego. Dedico meu coração porque é a parte justa para que a troca seja perfeita.

- Eu aceito seu coração. Que o pacto seja firmado, e que você nunca se desvie do caminho que traçamos pra você.

***

O sol despontava no alto das árvores, mal havia amanhecido. A tenda que eu adormeci estava toda rasgada e espalhada pelo chão. A terra havia sido revirada e pisoteada com fúria, e eu estava deitado, tremendo, encolhido, rosnando baixo, sentindo frio. Uma dor latejante no peito. Eu estava nu, sem pelos, eu era um humano agora, e junto ao peito entre minhas duas mãos, havia uma pena.

O Velho chegou andando, abrindo caminho através dos curiosos, com um instrumento que fazia barulho nas mãos, o barulho de água de chuva batendo na pedra, de água de rio correndo rápido. Ele falou umas palavras que eu não entendi na língua dos humanos, e lentamente o frio foi cedendo, como se meu espírito estivesse retornando para meu corpo.

- Levante-se Sujo, e venha comigo. Temos muito o que conversar.

Sujo, dos WendigoWhere stories live. Discover now