Capítulo 3

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Acordei no dia seguinte extremamente atrasado e saí correndo do apartamento pra pegar o trem das sete e meia da manhã. Entendam que eu pego o das sete horas já que entro às oito e meia na agência. Além de estar atrasado eu tive a pachorra de esquecer meus fones de ouvido, o livro e o meu caderno de anotações e rabiscos. O foda é o barulho ensurdecedor da cidade e claro que por conta disso cheguei num alto nível de estresse no trabalho. Não sei como eu consegui passar pelo trem e pelo ônibus ouvindo tanto barulho. Meu Deus, eu juro que a poluição sonora existe e nesse momento ela estava existindo pra cacete. Aquelas conversas alheias sobre o fim de semana de não sei quem que bebeu e deu PT, fulano que deu um toco no ciclano, vários burburinhos misturado com o som agudo arrepiante do freio do vagão nos trilhos, depois o motor do ônibus subindo uma ladeira, motorista trocando de marcha e o barulho ficando duas vezes maior, a porta do ônibus a todo momento abrindo e fechando. Ficou óbvio que eu não gosto da cidade e moro mais afastado exatamente por isso, né? Não é à toa que frequento o sebo da Cris, porque como eu já havia dito, lá é silencioso.

Cheguei na agência e logo tomei um café forte e preto com o Fred.

— Porra cê tá muito atrasado. – Fred me cumprimenta e pega um café.

— Bom d... – me engasguei com a temperatura do café. – Bom dia. – Completei tossindo e com a voz rouca. Minha garganta estava queimada.

Passaram alguns minutos, olhei a hora no relógio de pulso e lembrei que esqueci de bater o ponto.

— Esqueci de bater o ponto! – digo com a voz ainda um pouco rouca.

— Com o tanto de relógio que cê tem cê ainda consegue chegar atrasado e esquecer de bater o ponto? – Fred solta uma risada.

— Eu nem chego tanto atrasado assim – eu não estava querendo dar o braço a torcer, mas é real. Eu costumo chegar atrasado de vez em quando. – E cara, comprei um livro novo ontem e ele tá me consumindo – botei as mãos no bolso pra pegar o crachá. – Pera, já volto.

Voltei para o café. Fred pergunta:

— Que livro? – dá um gole em seguida me olhando no aguardo para eu pegar o livro.

Comecei a abrir o zíper da mochila, mas lembrei que esqueci o livro. Parei por uns segundos, virei meus olhos pra Fred e ele continuou me olhando já desconfiado de que eu tinha esquecido. Ou eu sou previsível demais ou ele me conhece muito bem.

— Puta que pariu... – Fred soltou uma risada alta. – Eu acordei atrasado e não l...

— Nic cê tem uma porrada de relógio no seu apartamento. É estranho pra caralho essa coisa de atraso e isso tá piorando a cada dia.

— Fred, cê sabe que eu só tenho aqueles relógios por causa da herança da minha vó e cacete, você SEMPRE tem essa conversa comigo! Cara, eu não vou me livrar daqueles relógios!

Agora é o momento de contar a história sobre relógios. Eu tenho muitos relógios no meu apartamento e eles estão todos espalhados. Alguns na parede da cozinha, a maioria na parede da sala e outros na escrivaninha do meu quarto, inclusive no banheiro. São muitos relógios. Mesmo. Minha vó Flora faleceu há um ano e meio mais ou menos e toda a coleção dela veio para o meu apartamento. Ninguém da família quis a coleção e estavam pra doar, queimar, quebrar, bom, se livrar de todos e eu aceitei pra manter todas aquelas histórias guardadas dentro de mim e do meu apartamento.

Minha vó contava uma história de cada relógio. Onde comprou, como comprou, de quem ganhou, onde ganhou e por aí vai. Eu amava ouvir cada uma delas e tenho saudades disso. Lembro de quando eu era moleque e ela me contava sobre o relógio onde no lugar dos números tinham frutas. Cada fruta representa uma determinada hora e ela ganhou esse relógio brega quando foi num encontro forçado pela mãe dela. Minha vó não deu a mínima pro rapaz, porque estava ocupada demais jogando pra ganhar o relógio de brinde. A brincadeira era a seguinte: o coelho ficava no centro de uma cerca e ao redor do bicho tinham casas numeradas. Você apostava numa casa numerada e torcia pro coelho entrar na que você apostou. O coelho entrou justo na casinha que dona Flora apostou e bingo!

Uma loucura muito interessante que ela já fez foi furtar um relógio no trabalho dela numa boutique no centro de São Paulo. Era delicado, muito chique e pequeno. Desconhecia a importância dele pra dona do estabelecimento, uma velha cricri. Minha vó paquerou esse relógio desde o primeiro dia de trabalho e passava um paninho toda manhã. Quando recebeu uma oferta melhor em outra loja e foi avisar sobre essa oportunidade, a velha teve uma reação muito péssima. Foi mal educada, falou que minha vó era mal agradecida, que isso era abandono e pra finalizar: chamou dona Flora de louca sem marido. Pronto. Minha vó juntou os pontos e na cabeça dela nada mais justo do que simplesmente furtar o relógio da boutique sem dar satisfações à velha. É melhor eu evitar os detalhes sobre o gesto obsceno e palavrões trocados entre as duas.

Posso escrever milhares de linhas e parágrafos sobre diversos acontecimentos entre minha vó e relógios. Teve a vez que ela foi assaltada e que negou entregar o relógio de pulso ao bandido. O mais engraçado foi o dia que eu estava no colégio e ela foi me buscar no meio da aula. Pra quê? Pra que eu a acompanhasse numa viagem pra São Sebastião pra comprar um relógio que só tinha no litoral. A melhor parte dessa história é que ela fez tudo isso sem avisar minha mãe e quando voltamos tinha polícia em casa e o bairro todo estava na rua preocupado com a gente.

E claro... não posso deixar de dizer que pendurei no meu quarto o relógio mais bonito, que tem uma história muito romântica e sem gestos obscenos. A velha sempre se emocionava ao me contar e com toda razão. Ela e meu avô se conheceram por meio de amigos em comum e ela já era considerada "encalhada" pela sociedade da época por ter em torno de vinte e seis anos e não ser casada. Ou seja, aos vinte e seis anos dona Flora já havia formado sua personalidade, opinião, vícios e o tal fetiche por relógios. Quando conheceu meu avô, o Sr. Nestor, e eles começaram a namorar, ele a aceitou e a amou mesmo quando viu quão louca ela era pelos relógios. Quer dizer, uma moça de vinte e seis anos que nunca havia noivado ou namorado sério e que era inexplicavelmente doida por relógios? Baita de uma mulher estranhamente interessante! Pois então Sr. Nestor comprou esse relógio, hoje pendurado em meu quarto, colocou uma simples aliança pendurada no ponteiro dos minutos e a pediu em casamento, simbolizando o amor e a aceitação da dona Flora com toda sua bagagem. Essa é a minha história favorita.

Fred sabia desse legado e inclusive dessa história do noivado dos meus avós e ainda assim pegava no meu pé sobre esse meu apego ao passado.

— Você é totalmente viciado em relógio e em horas! Agora há pouco você olhou a hora no celular e dois minutos depois no relógio de pulso! Por que essa preocupação toda com o horário? Sem falar que é bizarro você ainda assim chegar atrasadão em tudo.

Eu não reparei que tinha feito isso.

— 'Agora há pouco' quando?!

— Quando se lembrou de bater o ponto, porra.

Pior que eu devo ter feito isso mesmo e desconversei.

— Ó, eu esqueci meu fone de ouvido, meu caderno e meu livro. Eu tô meio irritado. A gente já teve essa conversa, sei lá, semana passada! Não tô na vibe.

— Só fica ligado. Você se preocupa demais com o horário e esquece o livro, o fone, de bater o ponto agora, por exemplo, e outras coisas também, sei lá.

A última coisa que eu precisava na minha manhã era de um sermão. E ele continuou.

— Enfim, né Nic? Vamo trabalhar! Vamo fazer dinheiro! Vai lá fazer o relatório que é pra hoje, garotão! Até às sete na minha caixa de entrada.

A penúltima coisa que eu precisava era de prazo na minha terça-feira. E ele continuou.

— Entregando relatório podemos ir pro Suvaco! – disse botando a mão no meu ombro.

Eu não preciso de prazos, sermões, um agradinho do chefe no fim do expediente. É difícil ser amigo de Fred desse jeito. Porra.

Estrada 171Where stories live. Discover now