Ué, Fácil Assim?

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A Dona Marieta gostava muito de falar! Diferente do que eu imaginei, meu pai aparecera por lá logo depois de enterrar meu irmão. Mas LOGO depois. No mesmo dia. Voltara na manhã seguinte acompanhado por um sujeito que quebrou a parede com uma marreta. Um sujeito que a minha burrice me impediu de contratar. Não fosse pela boa-vontade – ou curiosidade – de Dona Marieta, minha irmã teria que esperar mais um dia.

- Voltar amanhã? Mas por quê?! Não... não, o Souza pode tirar a janela. – Souza era o um faz-tudo que andava por ali.

Foi Dona Marieta quem me contou a situação de Natane enquanto o Souza arrancava a janela. A família de Natane tinha algum dinheiro. Mais do que a minha e muito mais que a do Souza. Tanto quanto a da Dona Marieta e certamente menos que a de alguns colegas de curso na faculdade. Mas o pai de Natane vinha a anos tentando se tornar empresário do ramo de fastfood e gastava, a cada cinco ou seis anos, tudo o que conseguia juntar em contratos de empresas do ramo. Funciona assim, você tem o lugar, contrata os funcionários e assina o contrato que te permite utilizar a marca e receber a comida congelada. Esses acordos podem custar até quinhentos mil. Quinhentos mil. Você não leu errado. Por que então Natane não tinha o que comer?

- Eu não sei... porque eu não passo o dia todo com ela, né?! Mas acho que ela só come uma vez por dia, com o ticket-refeição da firma, no almoço.

- Em casa ela não come? Tipo... café... janta?

- Com que dinheiro? Ela ganha oitocentos e oitenta, e o aluguel aqui, incluindo internet, luz e água, é oitocentos. – desconto nem pensar, né, Dona Marieta?!

Deserdada pela família?! Nada. As ideias brilhantes do pai geraram dívidas imensas. Tiveram que vender os carros – ao longo dos anos - e por fim o apartamento que era ali mesmo num bairro vizinho de Higienópolis, e ir morar de aluguel em outro lugar – Casa Verde, uma coisa assim. O pré-vestibular, interrompido no meio do ano, acabou sendo suficiente para Natane ser admitida no curso que queria. Era uma universidade particular, uma das mais caras, mas depois do aperto (leia-se: mais empréstimos) para pagar a matrícula e as primeiras mensalidades, uma bolsa veio em boa hora. As coisas estavam caminhando. Natane conseguiu um estágio e se mudou para a república da Dona Marieta. Pagava pelo quarto e os pais pagavam o restante. Mas então eles morreram. A família nunca podia pensar em seguro de vida, porque todo o dinheiro que conseguia guardar ao longo daqueles anos todos, ia para a chamada "poupança franquia". Era mais seguro ter um negócio que atraía consumidores o ano todo, como um restaurante fastfood, do que ter uma aposentadoria, dizia o pai. O problema era que o negócio dele nunca dava certo, porque, por mais que a pessoas comam o ano inteiro, independente das crises, muitos outros fatores influenciam para o sucesso de um negócio assim, que vai concorrer com tantos outros. Agora ali estava Natane. Não tinha uma casa ou carro para vender. As poucas joias da família que a mãe herdara, já estavam todas penhoradas. O pouco dinheiro que sobrou depois dos enterros e outras despesas que vêm com a morte, investiu em livros que os colegas veteranos garantiram que seriam necessários no restante do curso - estava órfã e pobre, não era o momento para desistir de uma boa formação.

- Tadinha. Ela paga o aluguel com a bolsa, come com o ticket e anda por aí com o vale-transporte. Não tem roupa, nunca compra nada. Guarda os oitenta reais que sobram pra comprar sabonete, pasta, modess... essas coisas. E um remédio, se precisar... Ainda bem que a firma dela é boa, tem convênio, tem tudo. Imagina se ela tem uma emergência médica?

Sabe aquela piadinha "deus, me dê paciência, porque se você me der forças eu mato alguém"? Pois é. Eu queria pegar Dona Marieta e bater aquela cara de maracujá de gaveta repetidas vezes nos tijolos esburacados que Souza revelava na parede, onde minutos antes estava a janela.

- Isso aí é um saco plástico?

- Parece que é sim, dona.

- Me dá aqui! É o testamento do meu pai! – dei um pulo da poltrona.

Gritei um agradecimento, joguei trezentos reais na escrivaninha do quarto, e saí correndo com o maço de papel – pareciam folhas de caderno, escritas à caneta – enrolado e embalado num saquinho rosa meio transparente, daqueles de feira. Esqueci o desespero e a vergonha que a história de Natane me causaram pelo menos pelos próximos quatro dias. A euforia percorreu meu corpo como eletricidade durante todo o percurso até em casa. Minha mente era bombardeada constantemente por dois pensamentos: minha irmã estava salva e aquela história toda era real. Uma pedra me contara onde encontrar o tal testamento do meu pai e lá estava ele.

Ao chegar na minha rua, a empolgação ainda me contagiava de forma tal que mal podia controlar meus movimentos. Queria correr, agitar os braços, e claro, gritar. Questionava se o pedido deveria ser único ou se após cumprir as exigências poderia manter o Grúmulo comigo indefinidamente, pedindo o que quisesse – minha irmã morrendo de câncer no hospital, uma garota fazendo uma refeição frugal por dia, e apenas algumas horas de posse de uma pedra mágica, já despertaram em mim as lógicas mais mesquinhas. Mas se os eventos pudessem se organizar assim tão simples e – considerando o teor fantástico – pacíficos, isso não seria vida, não é? Enquanto eu me esforçava para fingir uma expressão impassível, tentando lembrar que cara fazia todos os dias ao passar pelas pessoas na calçada, percebi movimento mais intenso que de costume em frente à casa da Dona Val. Pouco mais de quatro mil palavras já foram o suficiente para você antecipar que ela estava morta? Pois estava.

- Como assim?

- O Messias que tentou entrar. Tocou a campainha... ia fazer alguma coisa pra ela... acho que ele foi no banco, que ela pediu. Daí ele contou pra mim, eu contei pra Stela. A gente ficou preocupado. O filho da Ana Célia pulou o portão e entrou pela janela do banheiro.

- Aquela pequenininha?

- O filho da Ana Célia, não o Rodrigo... Zeza...

- Ah, bom...

- Chegou lá, parece que ela caiu, ninguém sabe...

E como sou a pessoa experiente com morte trágica, adivinhe só? É mesquinho, é egoísta, é tacanho, mas na hora lembrei com tristeza dos trezentos reais jogados na escrivaninha enquanto saía da casa da Rua Sergipe. Deveria ter perdido cinco minutos calculando o bico do Souza, os materiais e o inconveniente da mão-de-vaca Marieta. Mas agora estava aqui, com um saquinho de feira cheio de papel, querendo conversar com uma pedra e tentando me lembrar se alguma vez a Dona Val recebeu algum parente em casa que eu tivesse visto. De onde eu tiraria dinheiro para as despesas de um velório e um enterro, era obviamente meu próprio bolso. A questão era como cobrir isso depois.

- A gente já tá com o dinheiro que o Messias tirou. Alguém tem que ir lá na prefeitura, na polícia... nos lugares, assim, né?! Assinar, pra Dona Val não ser enterrada como indigente. – "alguém" era eu, claro. – E o Messias vai lá depois de novo, pega um dinheiro pra gente comprar uma roupa, uma coroa, velas... você acha que a gente põe vela? Ela era crente, acho que não pode... mas crente acha que morre e fica morto... não tem alma. Então ela não vai ver...

- A gente não vai chamar as pessoas da igreja dela? Eu ia chamar.

- Ah! É mesmo, é mesmo... é melhor sem vela, então né?! Você vai falar com o pastor dela, você conhece?

Dona Rose continuou falando enquanto eu me afastava. Antes de procurar um pastor ou convidar os amigos crentes da Dona Val para o velório, eu precisaria ir à polícia – de novo! – acompanhar o registro e o inquérito e aguardar a liberação do corpo. Ia passar em casa, tomar um banho; por nada não, só pra aliviar o choque, pegar todos os documentos necessários para acompanhar um caso numa delegacia. O inesperado da coisa era tão sensacional, que nem lembrei da pedra, mas de minha irmã, sim. O mesmo impasse de catorze anos antes: como Suzana reagiria à morte? Ela que já estava lidando com a própria. No caminho de casa, lá estava Zezinha na calçada. Quatro anos. Todas as outras crianças correndo e fazendo arruaça, alheias à Dona Val, e ele ali, olhando em volta procurando algo, que eu apostaria ser a tentativa desesperada de esquecer o corpo inerte de uma mulher, caído em algum canto da casa, que ele deve ter tocado, talvez sacudido, antes de perceber que estava morta. E então ter que passar pela janela do banheiro novamente e explicar o que aconteceu aos adultos que esperavam do lado de fora. Eu precisava muito gritar. 

Um Banquete na Terça e Um Maço de CartasWhere stories live. Discover now