O Banquete no Almoço de Terça

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            Depois de encontrar o Grúmulo minha vida se resume a querer enfiar a cara no chão e descobrir verdades inconvenientes. O desconforto causado por ambas situações chega a ser físico, e a sensação de impotência me faz chorar ao menos uma vez por dia. A situação deste dia não é o maior expoente de todas, mas sendo uma das, senão a primeira, eu quis ao mesmo tempo gritar em descontrole – assim mesmo, apenas erguer o rosto para o alto e gritar – e perguntar em voz alta "que merda eu faço com isso?!". Era como ter me convertido em uma batata ou sacola plástica. Uma batata dentro de uma sacola plástica. Isto era eu digerindo Natane. Natane era a menina que alugava o quarto da tal janela de frente para o cemitério, em que meu pai escondera o testamento. O sobrado era agora uma república e o quarto de Natane era aquele. Quando tentei agendar uma data para conversamos, meu único horário livre era meio-dia.

- Ah, nós vamos almoçar? É que eu não... eu...

- Sim, pensei em almoçarmos, você disse que trabalha próximo à Oscar Freire, eu conheço uns restaurantes ótimos na região...

- Ah... eu... meu horário de almoço é próximo das duas, não sei se...

- Que pena, eu tava pensando em pagar um almoço ali no Degas. Já ouviu falar?

- No Degas? Degas é aquele... aquele da parmegiana de setenta reais que dá pra três pessoas?

- Isso... esse aí. Já comeu lá?

- Então, meio-dia? – ué, pensei que seu horário de almoço fosse bem mais tarde...

- É... meio-dia. Você pode?

- Posso, posso sim.

- Não vai ter problemas no seu estágio?

- Não, eu posso sim, tranquilo. Posso sim.

- Pode ser amanhã?

- Nossa! Amanhã é ótimo! Posso, sim. - tudo bem, então, né?! Se Natane pode almoçar ao meio-dia caso alguém pague, tudo bem!

Natane não deveria pesar nem mesmo quarenta e cinco quilos. E não é que fosse baixinha, tinha estatura média, um e sessenta e cinco pelo menos. Os olhos eram muito fundos e a pele acinzentada em volta. Os cabelos eram muito finos e em algumas partes da cabeça, ralos. Aliás, tinha cabelo caído na roupa e cada vez que fazia um movimento mais brusco com o pescoço ou passava a mão na cabeça, mais cabelo ia para as roupas. Natane estava doente, e qualquer pessoa adulta que já tivesse vivido a pobreza sabia bem que era fome. Meus preconceitos foram logo determinando que a menina queria ser modelo, o que foi desmentido quando sugeri rindo que tentássemos dividir a parmegiana para três pessoas, entre duas, e a garota aceitou avidamente. Tão avidamente quanto comeu mais da metade da carne juntamente com sua porção de arroz e batata frita, acompanhados por quatro copos de suco e sobremesa. Aquela jovem, estudante de renomada instituição de ensino superior, contratada por algum programa de estágio de empresa notória e residente em um dos bairros mais tradicionais de São Paulo, estava passando fome.

- Quando meu pai morou naquele sobrado, ele escondeu uma coisa na janela.

- Nosschomp chomp chomp chomp. Que coischomp chomp chomp chomp. As crianças fazem cada coisa, nchomp chomp chomp chomp?!

- Você acha que o proprietário me deixaria tirar a janela e pegar?

- Proprietárichomp chomp chomp.

- Quê?!

- Proprietárichomp chomp chomp, desculpa. Proprietária. Dona Marieta.

- Ah... então, você acha que a Dona Marieta me deixa tirar a janela e pegar?

- Você é parentchomp chomp chomp chomp do homem que fochomp chomp chomp lá anos atrchomp chomp chomp?

- Que homem?

- Chomp chomp chomp desculpa. A Dona Marieta vive falando de um homem que morava lá quando criança e apareceu depois de adulto pedindo pra esconder alguma coisa no reboco da parede.

- Ah... então meu pai deve ter ido lá antes de morrer.

- Seu pai morreu? Lamento.

- Não precisa lamentar, ele queria.

- !!

- Desculpa, saiu sem querer. Você sabe se a Dona Marieta conheceu meu pai quando ele morava lá?

- Com certeza, ela tem duzentos anos.

Queria perguntar porque ela não se alimentava adequadamente, mas como entraria nesse assunto? Ao menos, saber que a tal Dona Marieta conhecera a família de meu pai me deu alguma esperança de conseguir pegar o testamento.

- Se a Dona Marieta não me deixar tirar a janela, você me ajuda? Eu preciso mesmo do que meu pai escondeu no seu quarto.

- Eu posso tentar... mas como?

- Você quer sobremesa? Não tem problema, tô pagando com VR. Eu almoço em casa, nunca uso.

- Nossa, quem me dera não precisar do meu VR e poder guardar pra farrear. Então eu vou aceitar sobremesa sim.

- Pede o que quiser.

- O que eu quiser? Vou pedir coisa cara, hein?!

- Pode pedir, aproveita. Então, você me ajuda?

- Eu quero, mas como?

- Não sei. Inventa um problema na janela ou na parede. – como eu poderia explicar o que tinha na casa e o quanto era imprescindível sem mencionar o Grúmulo?

- Tá bom, você tá me ajudando a economizar meu VR e me pagou um banquete, vou pensar numa desculpa.

- Você economiza o VR pra gastar quando sai com os amigos? Eu fazia isso quando trabalhava longe de casa, também.

- Quem dera... – resolvi não insistir, a menina olhava para o prato vazio, que ela quase lambera na minha frente, muito desconcertada e até meio triste. Estava realmente passando fome. – Quando você vai lá?

- Você acha que se eu for hoje, a Dona Marieta me atende? Eu já deveria estar com o test... com essa coisa que tem lá.

- Nossa, hoje? Vamos fazer assim, hoje quando eu chegar da aula, falo com ela que conheci você... acho que ela vai ficar de boa pra você ir amanhã. Ela adora contar a história do seu pai, vai te receber sim. Mas hoje não. Hoje, assim de repente, não. – mais um dia de atraso. Quatro dias!

- Então vamos fazer do seu jeito. Valeu, Natane!

- Nossa, eu que agradeço! Sério! Nem no Natal eu como assim.

Eu percebi, Natane, eu percebi. Queria mesmo era saber por quê.

Um Banquete na Terça e Um Maço de CartasWhere stories live. Discover now