Capítulo 2

57 3 1
                                    


Laura se enrolou toda como fazia quando criança. Ria sozinha por agir como uma adolescente agarrada no travesseiro bem no meio da enorme cama de casal do seu quarto. Mas seu sorriso não era de alegria, apenas uma expressão do quão irônica aquela situação parecia ser. 

Em sua mente as lembranças dançavam. Olhos castanhos quase cor de mel atormentavam seus pensamentos e o principal era a voz. Ela sentia tanta falta de tudo aquilo que até doíam-lhe os ossos. Nunca mais tinha se permitido chorar por tudo o que acontecera ou até mesmo por Carlos. 

Quando entrou no avião pra Londres aos 17 anos chorou durante todos os momentos, todas as escalas, horas a fim. Mas quando desembarcou jurou a si mesma que recomeçaria a partir daquele ponto e que nunca mais lamentaria por ele. 

Alimentou o ódio dentro de si e usou como força para levantar da cama todos os dias até que viver se tornou suportável novamente. Sobreviveu a 15 anos atrás. Sobreviveria novamente. Lutaria com todas as forças de seu ser. Jamais permitiria que Carlos a destruísse novamente. 

Imaginou uma menininha de bochechas arredondadas, pele branca e olhos castanhos. Chorou pela filha que nunca teve. Chorou pelo sentimento de vazio que sentia. Não entendia como ele podia ter coragem de fazer algo tão monstruoso com sua própria filha. Chorou pela incredulidade em seu pai, em sua família. Carlos havia matado sua menininha. E ainda assim todos o defendiam. Mas o pior... Mesmo assim, ela ainda o amava. Se odiava por isso. 


Há 16 anos atrás

Laura estava caminhando pelas ruas de seu bairro. Gostava de admirar as árvores de copas altas, ver pessoas passeando com seus cachorros de estimação e crianças jogando futebol descalços no asfalto. 

Ela crescera naquele bairro e gostava muito de todos que viviam ali. Era conhecida desde a padaria até a feira enorme no inicio de sua rua. Estava distraída cumprimentando a senhora da loja de bolos e salgados quando sentiu uma forte batida em si. Perdeu o equilíbrio, mas foi amparada por longos braços que não a permitiram cair. 

Mas não foi a força nos braços ou o cabelo ondulado que caía lindamente sobre aquele rosto que prendeu sua atenção. Foram os olhos! Aqueles olhos! Eram de um castanho quase mel e pareciam tão doídos. Ela não teve duvida que aqueles olhos carregavam dor. Sentiu imediatamente uma necessidade incontrolável de abraçá-lo, confortá-lo e arrancar daqueles olhos aquela dor. 

O sentimento seguinte a atingiu em cheio. Viu aqueles olhos meigos e doloridos se tornarem raivosos e ameaçadores. 

- Você não consegue ver por onde anda não? 

- Como é? 

- Você fica andando como uma retardada sem olhar para frente!

- Primeiro. Retardada é a sua mãe! Segundo, você que bateu em mim. 

- Ah! Não vou ficar aqui perdendo tempo. 

- Era só o que me faltava!

Ele foi caminhando com as mãos nos bolsos da calça completamente inadequada para aquele calorão de Manaus em pleno mês de maio. Ela ficou contemplando as costas do desconhecido irritante e não resistiu em gritar.

- Você é um idiota!

Ele virou-se e riu debochadamente enquanto lançava-lhe um beijo com a mão. Isso despertou em Laura uma raiva ainda maior que prolongou-se por todas suas pisadas fortes no caminho até sua casa. 

Ninguém poderia prever o amor que surgiu daquele esbarrão raivoso entre aqueles dois jovens perdidos. Ele mais do que ela, mas de qualquer forma, perdidos. 

Carlos tinha acabado de mudar-se para a vizinhança. Odiava como seu pai tratava a substituta que arranjara para sua mãe. Elice, mãe de Carlos, havia tido um curto período de luta contra o câncer de mama. Carlos ficou ao lado dela em todos os momentos, mas em apenas três meses ela o deixou. Seu pai, o maior canalha que poderia conhecer já não amava a sua mãe há cerca de um ano,  mas mantinha o casamento por questões de aparência. Ele era político e não poderia ter um escândalo de uma separação nas costas. 

Agora que sua mãe havia falecido, seu pai trouxera a amante 15 anos mais nova para casa e lhe concedia até os maiores absurdos. A descarada teve a audácia de ainda oferecer-se a Carlos no segundo dia em que o conheceu. 

Para completar-lhe a tragédia quando procurou uma fuga de toda aquela tortura esbarrou com uma desaforada que ainda tivera a indecência de falar-lhe mal da mãe que acabara de perder. Mas por algum motivo não tivera coragem de colocá-la em seu lugar. Tudo o que fizera foi afastar-se daquele cabelo sedoso que caiam em seus braços quando a segurou e daquele pescoço exposto que lhe parecia tão atraente. Quis beijar aquele pescoço pelo que lhe pareceu uma eternidade, mas controlou-se e amaldiçoou-se pela tolice a qual se permitira naquele dia. 

Laura não conseguia para de pensar naqueles olhos castanhos. Ainda os sentia por todo o seu corpo e aquela sensação tão nova a inundava e ludibriava irritantemente. 

Quando não conseguiu mais controlar sua inquietação e seus pensamentos, entregou-se a única coisa que poderia calar-lhe a mente, alegrar-lhe o coração e dar-lhe o prazer da paz. Montou seu Saxofone sem a menor pressas tomando o cuidado de limpar-lhe cada cantinho e umedecer as cortiças. Fez daquele momento uma religião e quando finalmente havia acabado, montado sua estante musical e selecionados as partituras que estudaria, entregou-se a musica. Tocou por toda a tarde. Manteve-se no quintal de sua casa. Amava tocar ao ar livre. 

Ora empenhou-se a executar com o máximo de perfeição possível as partituras que selecionou. Encantou-se pelas melhoras que identificou e sorriu consigo mesma. Depois colocou melodias em seus fones de ouvido e dedicou-se a executar solos  improvisados enchendo o ar ao seu redor. 

Os vizinhos amavam ouvi-la tocar. Sempre fora assim. A rua inteira calava-se quando Laura decidia tocar. Todos pareciam fazer as coisas com mais alegria ao som da musica apaixonante de seu saxofone. Mas Carlos não sabia o que sentia exatamente quando ouviu a melodia aquecer-lhe a alma. 

O jovem não resistiu ao caminhar em busca da fonte daquele som. A musica o envolvia e perturbava-lhe, acalmava e desordenava seus pensamentos. Eram tantos sentimentos controversos que lhe preenchiam, mas estava encantado, verdadeiramente encantado. Não conseguia nem imaginar quem poderia ser o responsável por aquilo. Mas queria conhecê-lo, tinha que conhecê-lo. Nunca tinha ouvido o som de um saxofone assim antes. Não ao vivo. Não sabia que poderia ser tão alto e imponente. 

Era muito bonito, mas nada delicado. Sabia que todos naquela rua deveriam estar escutando também, mas ninguém reclamava. Também como reclamar de algo tão bonito? A casa de onde vinha o som tinha portões de ferro. Eram grades não muito altas e era possível ver a casa de dois andares atrás e o longo quintal cheio de árvores de copas altas. Observou o chão ciscado com poucas folhas caídas. Viu que havia um espaço magnífico ao ar livre e xingou-se ao vê-la. 

Ela era magnífica. O saxofone em seu pescoço parecia fazer parte de seu corpo. Ela não era uma mulher magra, mas estava longe de ser gorda. Suas pernas eram grossas e robustas. Seus braços eram vigorosos e o rosto era infinitamente meigo. Notou seus cabelos lisos pintados de vermelho, lembrou-se de como eram macios. Imaginou-os grandes a altura da cintura dela e lamentou por eles acabarem em seus ombros. 

Carlos pensou em dar meia volta, pensou em correr dali, pensou em reclamar por ela tocar fazendo com que todos tivessem que ouvir. Não sabia se estava com raiva, ódio ou completamente apaixonado. 

Ela o viu. 

O Tempo que estive aquiOnde as histórias ganham vida. Descobre agora