Pílulas

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Começou com um estalo abafado e esporádico até adquirir a constância do som de um filete de água se chocando contra a pedra lavrada. Não havia nada, apenas o som no escuro. Alto, constante. E o líquido vertia enquanto ele despertava da vertigem.

Símbolos antigos e desconhecidos estavam entalhados em baixo relevo no grosso papel do envelope que ele segurava com os dedos frágeis ao recobrar a consciência. Não possuía remetente ou destinatário, mas de alguma forma a carta alcançara seu consultório. Alexander sabia o que aquele envelope significava e mesmo sem abri-lo, foi acometido por forte urgência ao se dar conta da situação e logo providenciou uma passagem para o litoral.

A chuva caía fina na janela de sua cabine à medida que a máquina de metal cortava as montanhas pálidas da divisa entre estados sob a luz fraca do início da tarde. O sacolejar gentil da locomotiva tranquilizava até alma mais atormentada em um estado de sonolência, mas ele não pregara adequadamente os olhos desde que saíra de casa embalado pelo medo nauseante. Uma das mãos se agarrava a carta, enquanto a outra fechava-se firmemente em torno de dois pequenos comprimidos. Ainda faltavam algumas horas até que chegasse ao seu destino e ele precisava descansar. Abriu a mão e encarou por alguns segundos os fármacos ali pousados. Respirou fundo, fechou os olhos e engoliu. Não demorou até que se entregasse ao sono.

A viagem lhe pareceu durar uma eternidade. Acordava de tempos em tempos tomado por fortes tremores e banhado de suor. A febre lhe ferroava à medida que sua cabeça balançava de um lado para o outro na poltrona desconfortável do trem. Dentre os períodos em que despertava e retomava o sono inquieto, agradecia pelo descanso sem sonhos.

Quando finalmente alcançou a estação portuária sentiu-se aliviado. Não havia trazido muito mais que uma maleta com poucos objetos pessoais. Desembarcou do trem e buscou um motorista que pudesse guia-lo pela estrada estadual que acompanhava a faixa litorânea até o seu destino. O trecho lhe custaria uma pequena quantia, mas a urgência da situação lhe exigia um meio mais veloz que o ônibus.

O único motorista carrancudo que concordara conduzi-lo pela estrada cheirava a álcool e reclamara durante todo o trecho sobre a decadência da via esburacada e corroída pela umidade e insolação. Alexander evitava falar. Sua cabeça esperava pelo pior cada vez que um arrepio lhe subia quando olhava para o envelope em baixo relevo. Volta e meia seus dedos se pousavam por alguns segundos sobre o lacre feito à moda antiga com cera. A marca do cefalópode cravada no extrato da vela podia significar apenas uma coisa: Helena.

Passava das seis da tarde quando vislumbrou a edificação que ansiara tanto por encontrar, encarapitada no topo de um precipício ao lado do mar. A estrutura branca tinha ares de colonos e antigos, preservada impecavelmente mesmo sob a ação violenta das intempéries marítimas. Mas o que mais chamava atenção era o grande farol branco-esverdeado, erguido no limite do despenhadeiro anexado ao casarão.

Desceu do taxi após deixar uma grande quantia e duas pílulas para a ressaca para o taxista embriagado que agora reclamava de ter que voltar sozinho. Agradeceu a corrida e se adiantou para a soleira da estrutura. Uma das peculiaridades do lugar eram as pesadas portas de granito que lacravam a entrada, esculpidas em baixo-relevo com o mesmo estilo de runas e hieróglifos encontrados no envelope. Apertou o papel com firmeza no bolso e bateu com as argolas na pedra lapidada esperando que alguém atendesse.

A luz do sol já ia se esvaindo quando ele resolveu forçar a entrada, após tocar vários minutos sem resposta. Suas mãos suavam e o coração acelerava levemente. Tinha medo que fosse tarde. Jogou o peso do corpo contra as pedras e elas cederam. Prostrou-se diante do portal quando o cheiro repulsivo de peixe podre invadiu lhe as narinas. Conteve a ânsia de vômito e procurou pelos interruptores de luz do local. Quando acendeu, a surpresa.

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