Questões de Honra e Lealdade - Parte 8

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— Não é, afinal, o dever de um samurai servir e morrer pelo seu lorde?

Houve silêncio. Existem momentos em que faltam as palavras e apenas o cruel universo força as coisas a terem o seu seguimento. Hanshirô não respondeu, pois buscava aceitar que há muito tempo — desde que os primeiros guerreiros de seu clã apareceram em busca de sua vida — sabia que não haveria outro término para aquela tragédia.

Foi o vassalo dos Minamoto, não suportando aquela calmaria onde o sussurro das espadas podiam ser ouvidos no limiar do silêncio, quem continuou o debate. Toda informalidade prévia retornou aos seus modos como se nunca o houvesse abandonado. Assim era Rokurota.

— Os dois melhores alunos de Takezo-sensei nunca duelaram no dojô — falava com um sorriso triste, quase como em um pedido de desculpas — nem mesmo quando Minamoto no Kazuô-sama desejou descobrir quem seria o melhor espadachim do clã. Talvez seja o karma, como diz, que tenha nos colocado nessas situações, para que no final de tudo tenhamos que testar nossas espadas.

Hanshirô baixou a cabeça por um instante e olhos perspicazes poderiam ter visto através da meia luz da cabana a sombra do sorriso modesto que cruzou o seu rosto. Mas quando olhou para o amigo novamente, seu rosto já havia voltado á formalidade.

— Considerando toda a ambivalência desta tragédia, onde fratricida acaba por proteger a vida de muitos, poderia este humilde anfitrião apelar para a cortesia de um hóspede e requisitar alguns instantes de paz? Enviar ao reinos dos mortos uma alma portando um nome que não lhe pertence e carregando o símbolo de um status o qual abandonou seria o mesmo que condená-la eternamente.

— Em muito me desagrada negar tal honrado pedido! — respondeu Rokurota com firmeza. — No entanto meu senhor enviou-me para tomar a vida de um guerreiro traidor do clã Minamoto! Minha honra, meu dever e o futuro de minha família estão à mercê desta ordem! Poderia eu trair o que me foi ordenado e vingar a honra do falecido Yorinobu-sama cruzando espadas com um homem que raspou a cabeça e abandonou o caminho do arco e da flecha?! Cortesia é virtude de um samurai. Mas jamais deve estar acima da honra e do dever!

Mal a boca de Hanshirô começou a abrir-se para uma réplica jamais ouvida e Rokurota o interrompeu.

— No entanto —, começou ele, com a voz num tom ligeiramente condescendente e perfumada com uma serenidade que lhe soava estranha — é possível que eu tenha dito aos outros bushis do clã que sua presença com armas de fogo me tornaria descuidado e irritadiço. Creio que retornarão apenas passadas quatro horas. Felizmente, um guerreiro como eu jamais conhecerá a derrota.

Hanshirô acenou quase imperceptivelmente com a cabeça, numa pequena reverência que mais existiu em intenção do que em materialidade. A resposta que deu estava a altura das palavras de seu executor..

— Raspar a cabeça tem um peso que pode mudar até mesmo as marés da história, mas é um ato que dura uma infimidade frente as marés do tempo. Mas para um homem que aceitou seu karma e o curso da vida, é possível por vezes entender a significância dos eventos e a impermanência de todas as coisas. E, se o mundo cruel em que vivemos nestes últimos dias da lei determinou que espíritos amigos entrarão em confronto, para honrar tal estimado rival, mesmo alguém que busca outro caminho deve o tributo de combater ainda como um guerreiro. Principalmente tratando-se de um primeiro e último embate.

Rokurota não se fez de rogado. Um sorriso grande e impertinente marcou o seu rosto, mesmo naquele momento de formalidades. Eles se olharam muito brevemente, e então ao mesmo tempo se saudaram com uma longa reverência, juntando as pernas com um estrondo e arqueando as costas o máximo que conseguiram. Afinal nada menos do que isso seria adequado ao momento.

Quando o olhar dos dois amigos transformados em rivais se encontrou novamente, a serenidade de um só poderia ser comparada à determinação do outro. De costas perfeitamente eretas e de queixo levantado — como deveria ser — sacaram as espadas com sofreguidão e as armas anunciaram aos ventos a sua liberdade.

De um lado, Rokurota levantou a sua katana até que o cabo ficasse ao lado da cabeça — a lâmina apontando diretamente para o céu que não podia ver. Poucos metros à frente, Hanshirô adotou uma postura média e, segurando sua própria arma a frente de seu tronco, direcionou o símbolo de sua alma samurai para o queixo do oponente.

Foi Rokurota quem se anunciou primeiro. Poucos que vieram depois dele devem ter falado com tanto orgulho e bravura.

— Sou Takeouchi Rokurota — gritou em plenos pulmões — neto de Takeouchi Sanosuke. Vassalo dos honrados Minamoto! Discípulo de Takezo-sensei! Guerreiro e yojimbo de meu clã! Há gerações minha família conquistou a honra de servir aos Genji, ao shogun e ao Imperador quando Takeouchi Olhos de Lobo salvou Minamoto no Yoritomo de uma emboscada dos Heike!

O traidor respondeu com calma, mas firme e de rosto pétreo.

— E eu sou Minamoto no Hanshirô. Filho de Minamoto Tatsuya, descendente de Minamoto no Yoritomo, o primeiro shogun de Kamakura. Meu nome e meu sangue possuem uma ligação direta com Hikaru Genji e através dele estou ligado ao Imperador Kiritsubo e sua linhagem divina. Amei uma mulher como os samurai fazem guerra, vi-a em sua cama de sangue. Matei o meu primo, salvei meu clã.

E então nada mais no mundo importava, se é que um dia importou. Só havia eles dois ali, imóveis e concentrados. Se encaravam numa continuação do primeiro olhar que haviam trocado aquele dia. Ao redor, tudo pareceu escurecer e o som dos pássaros que saudavam um fim de tarde dourado tornou-se apenas uma lembrança efêmera de um outro tempo, uma outra vida. A brisa bravia que soprou para dentro da cabana trouxe o eco de eras passadas. Talvez mesmo espíritos buscassem um vislumbre daquele embate titânico entre vento e fogo que mesmo hoje ainda é narrado. Cabelos e roupas se agitaram com o vento, mas os dois gigantes eram como estátuas entalhadas em perfeitas posturas de combate. Combinando corpo, mente e alma, perscrutavam por detrás do espelho dos olhos o que se passava com o inimigo.

Naquela época, entender o oponente não era o bastante numa luta entre kensei — principalmente no embate entre Hanshirô e Rokurota —, era preciso tornar-se o outro.

A capacidade de alcançar o vazio suficiente para matar um buda está além da maioria dos homens mortais — com exceção de alguns poucos lobos solitários —, mas assassinar um amigo, irmão de outras vidas, também requer uma concentração que poucos dos que trilham o caminho do arco e da flecha poderiam reunir. Hanshirô buscava isso ao esvaziar a sua mente, enquanto Rokurota canalizava a sua determinação.

Conforme um transe que misturava batalha e abandono carregava os dois guerreiros para planos superiores de existência — onde os símbolos tomam formas e tudo se mostra em sua forma verdadeira —, podiam vislumbrar suas auras. Essa extensão de seus espíritos preenchia a distância que os separava e, com estrondos apenas imaginados, se chocavam como um rio bravo encontrando a força das marés.

Poderiam ter passado anos naquele estado de impávida imobilidade, rondando a alma do outro, procurando por uma brecha, mas sempre constatando que em sua diferenças possuíam a mesma força; buscando uma disparidade em suas competências com a espada, apenas para encontrar uma capacidade idêntica aplicada por emoções diferentes; e analisando qualquer outro detalhe misterioso que poderia determinar o rumo das energias contidas nas inúmeras cabanas. Há quem diga que envelheceram pelo menos cinco anos, mesmo que, lá fora, os pássaros cantassem a mesma canção e o mundo ainda estivesse em sua hora mais dourada.

As inúmeras histórias sobre o conto dos dois amigos divergem, mas nesta, foi Hanshirô que, sem quebrar em momento algum o elo que criara aquele universo compartilhado, falou primeiro.

— Estamos em pé de igualdade, Rokurota-san. Mas esta luta não será um empate. Faça o primeiro movimento, basta um passo para frente e eu irei aguardar o seu ataque. Primeiro você virá com cautela, mas depois de cobrir metade da distância...

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