— Não é, afinal, o dever de um samurai servir e morrer pelo seu lorde?
Houve silêncio. Existem momentos em que faltam as palavras e apenas o cruel universo força as coisas a terem o seu seguimento. Hanshirô não respondeu, pois buscava aceitar que há muito tempo — desde que os primeiros guerreiros de seu clã apareceram em busca de sua vida — sabia que não haveria outro término para aquela tragédia.
Foi o vassalo dos Minamoto, não suportando aquela calmaria onde o sussurro das espadas podiam ser ouvidos no limiar do silêncio, quem continuou o debate. Toda informalidade prévia retornou aos seus modos como se nunca o houvesse abandonado. Assim era Rokurota.
— Os dois melhores alunos de Takezo-sensei nunca duelaram no dojô — falava com um sorriso triste, quase como em um pedido de desculpas — nem mesmo quando Minamoto no Kazuô-sama desejou descobrir quem seria o melhor espadachim do clã. Talvez seja o karma, como diz, que tenha nos colocado nessas situações, para que no final de tudo tenhamos que testar nossas espadas.
Hanshirô baixou a cabeça por um instante e olhos perspicazes poderiam ter visto através da meia luz da cabana a sombra do sorriso modesto que cruzou o seu rosto. Mas quando olhou para o amigo novamente, seu rosto já havia voltado á formalidade.
— Considerando toda a ambivalência desta tragédia, onde fratricida acaba por proteger a vida de muitos, poderia este humilde anfitrião apelar para a cortesia de um hóspede e requisitar alguns instantes de paz? Enviar ao reinos dos mortos uma alma portando um nome que não lhe pertence e carregando o símbolo de um status o qual abandonou seria o mesmo que condená-la eternamente.
— Em muito me desagrada negar tal honrado pedido! — respondeu Rokurota com firmeza. — No entanto meu senhor enviou-me para tomar a vida de um guerreiro traidor do clã Minamoto! Minha honra, meu dever e o futuro de minha família estão à mercê desta ordem! Poderia eu trair o que me foi ordenado e vingar a honra do falecido Yorinobu-sama cruzando espadas com um homem que raspou a cabeça e abandonou o caminho do arco e da flecha?! Cortesia é virtude de um samurai. Mas jamais deve estar acima da honra e do dever!
Mal a boca de Hanshirô começou a abrir-se para uma réplica jamais ouvida e Rokurota o interrompeu.
— No entanto —, começou ele, com a voz num tom ligeiramente condescendente e perfumada com uma serenidade que lhe soava estranha — é possível que eu tenha dito aos outros bushis do clã que sua presença com armas de fogo me tornaria descuidado e irritadiço. Creio que retornarão apenas passadas quatro horas. Felizmente, um guerreiro como eu jamais conhecerá a derrota.
Hanshirô acenou quase imperceptivelmente com a cabeça, numa pequena reverência que mais existiu em intenção do que em materialidade. A resposta que deu estava a altura das palavras de seu executor..
— Raspar a cabeça tem um peso que pode mudar até mesmo as marés da história, mas é um ato que dura uma infimidade frente as marés do tempo. Mas para um homem que aceitou seu karma e o curso da vida, é possível por vezes entender a significância dos eventos e a impermanência de todas as coisas. E, se o mundo cruel em que vivemos nestes últimos dias da lei determinou que espíritos amigos entrarão em confronto, para honrar tal estimado rival, mesmo alguém que busca outro caminho deve o tributo de combater ainda como um guerreiro. Principalmente tratando-se de um primeiro e último embate.
Rokurota não se fez de rogado. Um sorriso grande e impertinente marcou o seu rosto, mesmo naquele momento de formalidades. Eles se olharam muito brevemente, e então ao mesmo tempo se saudaram com uma longa reverência, juntando as pernas com um estrondo e arqueando as costas o máximo que conseguiram. Afinal nada menos do que isso seria adequado ao momento.
Quando o olhar dos dois amigos transformados em rivais se encontrou novamente, a serenidade de um só poderia ser comparada à determinação do outro. De costas perfeitamente eretas e de queixo levantado — como deveria ser — sacaram as espadas com sofreguidão e as armas anunciaram aos ventos a sua liberdade.
De um lado, Rokurota levantou a sua katana até que o cabo ficasse ao lado da cabeça — a lâmina apontando diretamente para o céu que não podia ver. Poucos metros à frente, Hanshirô adotou uma postura média e, segurando sua própria arma a frente de seu tronco, direcionou o símbolo de sua alma samurai para o queixo do oponente.
Foi Rokurota quem se anunciou primeiro. Poucos que vieram depois dele devem ter falado com tanto orgulho e bravura.
— Sou Takeouchi Rokurota — gritou em plenos pulmões — neto de Takeouchi Sanosuke. Vassalo dos honrados Minamoto! Discípulo de Takezo-sensei! Guerreiro e yojimbo de meu clã! Há gerações minha família conquistou a honra de servir aos Genji, ao shogun e ao Imperador quando Takeouchi Olhos de Lobo salvou Minamoto no Yoritomo de uma emboscada dos Heike!
O traidor respondeu com calma, mas firme e de rosto pétreo.
— E eu sou Minamoto no Hanshirô. Filho de Minamoto Tatsuya, descendente de Minamoto no Yoritomo, o primeiro shogun de Kamakura. Meu nome e meu sangue possuem uma ligação direta com Hikaru Genji e através dele estou ligado ao Imperador Kiritsubo e sua linhagem divina. Amei uma mulher como os samurai fazem guerra, vi-a em sua cama de sangue. Matei o meu primo, salvei meu clã.
E então nada mais no mundo importava, se é que um dia importou. Só havia eles dois ali, imóveis e concentrados. Se encaravam numa continuação do primeiro olhar que haviam trocado aquele dia. Ao redor, tudo pareceu escurecer e o som dos pássaros que saudavam um fim de tarde dourado tornou-se apenas uma lembrança efêmera de um outro tempo, uma outra vida. A brisa bravia que soprou para dentro da cabana trouxe o eco de eras passadas. Talvez mesmo espíritos buscassem um vislumbre daquele embate titânico entre vento e fogo que mesmo hoje ainda é narrado. Cabelos e roupas se agitaram com o vento, mas os dois gigantes eram como estátuas entalhadas em perfeitas posturas de combate. Combinando corpo, mente e alma, perscrutavam por detrás do espelho dos olhos o que se passava com o inimigo.
Naquela época, entender o oponente não era o bastante numa luta entre kensei — principalmente no embate entre Hanshirô e Rokurota —, era preciso tornar-se o outro.
A capacidade de alcançar o vazio suficiente para matar um buda está além da maioria dos homens mortais — com exceção de alguns poucos lobos solitários —, mas assassinar um amigo, irmão de outras vidas, também requer uma concentração que poucos dos que trilham o caminho do arco e da flecha poderiam reunir. Hanshirô buscava isso ao esvaziar a sua mente, enquanto Rokurota canalizava a sua determinação.
Conforme um transe que misturava batalha e abandono carregava os dois guerreiros para planos superiores de existência — onde os símbolos tomam formas e tudo se mostra em sua forma verdadeira —, podiam vislumbrar suas auras. Essa extensão de seus espíritos preenchia a distância que os separava e, com estrondos apenas imaginados, se chocavam como um rio bravo encontrando a força das marés.
Poderiam ter passado anos naquele estado de impávida imobilidade, rondando a alma do outro, procurando por uma brecha, mas sempre constatando que em sua diferenças possuíam a mesma força; buscando uma disparidade em suas competências com a espada, apenas para encontrar uma capacidade idêntica aplicada por emoções diferentes; e analisando qualquer outro detalhe misterioso que poderia determinar o rumo das energias contidas nas inúmeras cabanas. Há quem diga que envelheceram pelo menos cinco anos, mesmo que, lá fora, os pássaros cantassem a mesma canção e o mundo ainda estivesse em sua hora mais dourada.
As inúmeras histórias sobre o conto dos dois amigos divergem, mas nesta, foi Hanshirô que, sem quebrar em momento algum o elo que criara aquele universo compartilhado, falou primeiro.
— Estamos em pé de igualdade, Rokurota-san. Mas esta luta não será um empate. Faça o primeiro movimento, basta um passo para frente e eu irei aguardar o seu ataque. Primeiro você virá com cautela, mas depois de cobrir metade da distância...
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Questões de Honra e Lealdade
Historical FictionDois amigos de infância, samurais experientes na arte da espada, se encontram mais uma vez no instante em que seus objetivos se interpõem. Nos últimos instantes que têm direito, conversam sobre o passado, sobre as tragédias recentes e suas pretensõ...