Questões de Honra e Lealdade - Parte 5

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Não se pode afirmar que endureceu o rosto e tampouco que continuou com um semblante da indecisão. Do que fez Rokurota quando finalmente reuniu espírito para falar o que veio em seguida, só se pode dizer que ele lentamente começou a desamarrar o kotê que protegia o seu antebraço.

— Sabe... em momento algum encarei como errado o que você fez, Hanshirô-san.

O som da primeira manopla caindo ao chão empoeirado foi como um eco da surpresa do outro. Repentino e inquietante.

— O que quer dizer? — havia serenidade no rosto do guerreiro que abandonara o seu nome, mas uma ligeira desconfiança relampejou em seu espírito.

Primeiro Rokurota tomou ar, como se estivesse muito cansado. Um cansaço que, mesmo não acreditando na ideia, era mais espiritual do que físico. Respondeu logo após começar a remover a sua outra manopla.

— Tudo. Desde a sua devoção para com Hanakichi. — a manopla remanescente escorregou do antebraço de Rokurota — Em nenhum momento condenei sua posição... Não ousaria afirmar que compreendia. Mas um guerreiro tem o direito de escolher o próprio destino, mesmo que escolha um destino inglório.

Hanshirô balançou a cabeça.

— Tais palavras são indevidas, estimado hóspede. Eu não poderia sequer pensar mal de alguém que se colocasse contra minha pessoa. Em minha posição, eu havia de honrar o nome dos Minamoto. Era esperado que eu honrasse os meus antepassados e a linhagem nobre de minha família.

O homem vestido para a morte não guardava mágoa dos que haviam zombado de seu comportamento. Como um verdadeiro seguidor do tao e da sabedoria dos boddisatsva, aceitava não só as consequências de suas ações futuras, mas também das passadas. Essa é uma das preocupações de alguém que busca elevar o próprio espírito e adquirir um maior conhecimento sobre si mesmo. Mas havia o que mesmo os esforçados em apenas acompanhar o rio da vida deixassem de notar nas margens que seguiam. Ainda que Hanshirô buscasse praticar a humildade, não deixava de observar acontecimentos de importância com as lentes furtivas do orgulho.

Quanto Rokurota, o próprio orgulho. Vivia dele. Era o que norteava o caminho que pavimentara para si. Sendo vassalo dos nobre Minamoto, aquele guerreiro entendia que apenas assim poderia um samurai de família pouco importante conquistar as próprias glórias enquanto honrava os seus deveres. Ele sabia o que era concentrar-se na própria pessoa sem a máscara da humildade.

— O que não percebe, Hanshirô-san — disse o vassalo com um sorriso triste que alguns poderiam enxergar como um sorriso de pena — é que nada foi sobre você. Em momento algum.

Talvez pela primeira vez em algum tempo, os olhos do Minamoto se estreitaram e suas sobrancelhas se contorceram com uma angústia que ameaçou afogar a sua alma.

— E o que tais palavras suspeitas escondem?

A voz de Hanshirô saiu quase sibilante, traindo o estado de paz interior que buscava para si desde que renunciara ao seu nome. É possível que mesmo o mais esforçado dos santos sinta a sua mente lutar para retornar aos caminhos dos velhos hábitos. E Hanshirô — mero aprendiz na eterna busca pela iluminação — logo retornou aquele estado de alerta tão comum nas cortes dos samurai. Onde cada sentença lançada poderia esconder uma ameaça e cada palavra proferida trazer o veneno sutil do escárnio.

Era fato que ele aceitara o seu destino e estava tão convicto a abandonar o nome que lhe fora dado pelos pais quanto todos aqueles que deixavam o caminho do arco e da flecha quando tinham muito a perder e muito pouco a ganhar. Assumia a culpa de seus amores indevidos, da traição e da mácula do sangue fraterno que banhava a sua espada.

Mas não poderia deixar de soar-lhe inadequada, ou até mesmo extremamente ofensiva, a ideia de que não era ele o protagonista — e principalmente vilão — de tamanha desaventurança, que era outro, e não ele, o alvo daquelas palavras vis que escorriam das afrontas sussurradas.

Não pôde, no entanto, sanar aquela súbita inquietação que, como sentimento exótico e por algum tempo não experimentado, rastejou por seu corpo. Pois balançando a cabeça de modo entristecido, Rokurota começou a desamarrar as perneiras da armadura que lhe fora cedida pelo próprio daymio.

A resposta foi proferida apenas depois que o samurai vassalo dos Minamoto lentamente se desfez das peças que protegiam as suas pernas. A voz estrondosa de Rokurota veio como um trovão.

— Seu honorável pai é um samurai de prestígio. Conselheiro e primo do próprio daimyo. Sua mãe vem de uma linhagem igualmente poderosa e por meio dela, tem a honra de traçar uma linha direta até alguns dos mais importantes generais que lutaram nas guerras Genpei...

Por um instante, Rokurota vacilou e em seu rosto não havia mais a resolução de um guerreiro, mas uma nota de dúvida. A mesma com que simples serviçal luta consigo entre o dever de informar e o medo de transmitir uma notícia ruim. Mas há de se saber que tal momento de fraqueza não poderia ter durado, sendo um homem que seguia o caminho do arco e da flecha e que almejava para si glórias futuras, certamente considerou indigno perfumar as palavras duras que precisava dizer. Mesmo que o alvo delas fosse um amigo querido.

O samurai endureceu suas feições novamente e voltou a falar. Sua voz, como sempre, era um rugido.

— Mas você apenas um terceiro filho, Hanshirô-san! Quando os fofoqueiros desocupados sussurravam o seu nome, não era a você a quem se referiam! O usavam como um heimin usa a enxada para fazer o seu arado.

A acusação de Rokurota ecoou pelo casebre mal iluminado e ele contraiu ainda mais o seu rosto barbado. Era uma tarefa inglória afirmar que um samurai de linhagem nobre não possuía relevância nas maquinações do clã, ainda que estas tramas fossem ruins. De fato, mesmo para um guerreiro de família pobre e desimportante, aquelas eram palavras que poderiam atrair um rancor que seria passado adiante, como herança maldita, até que o caso fosse lavado com sangue e morte.

Muito se ponderou sobre como a situação de Hanshirô afetava a Rokurota. Enquanto um nascera com tudo o que um membro do kuge poderia ter, ao outro coubera apenas o direito de carregar um sobrenome desimportante. Como aqueles que precisam lutar por cada conquista enxergam os que já tem tudo a sua disposição? Se por um lado, a condição de Hanshirô exigia que ele estivesse a altura de expectativas esmagadoras, era verdade que a ele eram possíveis escolhas e atitudes as quais vassalos só poderiam sonhar. Quanto a Rokurota, ele não possuía importância alguma. Mas que escolha lhe cabia além caminhar na direção da glória e da honra?

De olhos arregalados, Hanshirô olhava sem enxergar para um ponto qualquer além do amigo. O silêncio era quebrado apenas por sua respiração pesada.

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