O Grúmulo

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Assim como do dia em que morreu meu irmão, não me lembro de nenhuma informação prática a respeito do dia em que meu pai cometeu suicídio na minha frente. Sim, me lembro que tinha vinte e um anos e que fora pela manhã, mas nada do que se lê em livros e se vê em filmes: "era uma quinta, nove da manhã, garoava". Nada dessas presepadas. Sei o dia do enterro, assim como sei também o dia do enterro de meu irmão. Dezesseis de julho de mil novecentos e noventa e quatro, e nove de julho de mil novecentos e oitenta, respectivamente. Estavam todos comprando fogos e organizando churrascos para a final da Copa do Mundo e eu tomando providências para o enterro de meu pai. Depois, pois era muito criança na época, soube que o enterro de meu irmão fora no mesmo dia em que morreu Vinícius de Moraes. Alguns podem alegar que talvez tenham morrido no dia anterior aos velórios, pois é assim quase sempre. Mas quase sempre não é sempre. Quando os corpos precisam ser recolhidos pela polícia para passarem por autópsia no Instituto Médico Legal por conta de um inquérito – e no caso de meu irmão, uma investigação – o intervalo entre o dia da morte e do sepultamento é muito maior do que vinte e quatro horas.

No dia em que meu pai se matou me chamou para uma conversa – a mais impensável que já participara até sete anos atrás – e ao final, soltou o corpo e caiu pesadamente no chão, a cabeça sobre uma estaca pontiaguda de metal, enquanto eu do alto da minha crise pós-adolescente de autossuficiência, guinchava fora de controle, não pelo desespero de vê-lo morto, ou mesmo pela violência da situação, mas pelas atrocidades que me disse. Sei hoje que ele mesmo pregara a estaca no chão, planejando se matar após nossa conversa de doidos. Uma morte horrível. Quem premeditaria morrer assim? Meu pai. Meu pai em nosso último colóquio confessara-me coisas horríveis. Mas não, este relato não é sobre suas confissões. Até o final desta leitura, as confissões serão de seu conhecimento, não que esta narração seja um relato sobre ele. É sobre o Grúmulo.

- Quê?!

- Você pode pedir o que quiser, mas existem regras.

- Nossa, cala a boca! O que eu quero é partir a sua cara em mil pedaços! Seu monstro! Eu odeio você! Vou contar pra Suzana... ela vai odiar você também! Some da minha frente antes que eu te mate! Mentiroso! Desgraçado! Mentiroso... É tudo mentira sua!

- Presta atenção... vou te dizer onde tá...

- Não quero saber! Velho louco! Mentiroso. Eu te odeio! Some da minha frente.

- No guarda-roupa, na porta onde a gente guarda as coisas da sua mãe. Tem uma caixa, parece um porta-joias... desses com caixa de música. A pedra tá lá dentro.

- Doido... velho maluco, vou chamar alguém de um hospício pra vir te buscar...

E enquanto eu gritava e cuspia de ódio, ele se jogou em cima da estaca. Não pensei muito, não chorei, não entrei em desespero. Fui num orelhão na rua e chamei a polícia. Nem me passou pela cabeça que as principais suspeitas recairiam sobre mim. Eles vieram, contei da briga, contei da confissão – pensei que o caso do meu irmão finalmente seria encerrado, mas não foi; meu pai precisaria ter deixado uma carta, uma fita, alguma coisa do tipo. Nos dias que se seguiram a perícia analisou o corpo, o cômodo onde estávamos: a sala de costura de minha mãe. Examinou minhas roupas, convocou vizinhos a depor. No fim o inquérito concluiu que foi suicídio. Os investigadores encontraram as ferramentas que meu pai usou naquela mesma manhã, para pregar a estaca no chão. Não tinham digitais minhas e o dono do armarinho no meu bairro contou que ele comprara uma caixa de pregos na tarde anterior. Caso encerrado em poucos dias. Esta foi a parte fácil.

A parte difícil foi contar para minha irmã. Suzana ainda estava no último ano do colégio e tive que busca-la na escola. É por isso que me lembro de tudo ter acontecido pela manhã. Eu não precisava buscar Suzana, afinal, ela não poderia me ajudar em nada, mas pensei em como se sentiria e o que pensaria de mim caso eu deixasse para contar apenas quando chegasse em casa, e encontrasse os vizinhos todos comentando pelas calçadas, a dona Val tentando me fazer sentar e comer e a polícia entrando e saindo, fazendo perguntas, pegando e levando as coisas de casa. Não. Pedi a eles para me deixarem buscar minha irmã na escola, respirei fundo e me tornei a pessoa adulta que acreditava ser durante desde os dezesseis. Mas eu era uma criança. Me atrapalhei, falei ainda dentro da viatura. Contei da briga. Suzana gritava, queria saber de todo jeito porque brigamos, como ele morreu, falou que a culpa era minha, inventou uma lembrança de não querer sair de casa naquele dia. Mentira, era popular e adorava a escola. Na minha família nunca tivemos problemas com timidez. E minha irmã ainda por cima é muito bonita. Mas tinha acabado de perder o pai, e a gente quando passa por tragédias, inventa um monte de memórias pra compensar a sensação de perder o controle. Que é só uma sensação, a gente nunca tem controle de nada.

Um Banquete na Terça e Um Maço de CartasWhere stories live. Discover now