Capítulo 26

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Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros à margem de um lago que havia nos tabuleiros.
O cristão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a tristeza saiu de seu coração e subiu à fronte.
— Meu irmão, disse o chefe, teu pé criou raiz na terra do amor; fica: Poti voltará breve.
— Teu irmão te acompanha; ele disse, e sua palavra é como a seta de teu arco; quando soa, é chegada.
— Queres tu que Iracema te acompanhe às margens do Acaraú?
— Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos pitiguaras não terá para ela mais que tristeza e dor. A filha dos tabajaras
deve ficar.
— Que esperas tu então?
— Teu irmão se aflige porque a filha dos tabajaras pode ficar triste e abandonar a cabana, sem esperar pela sua volta.
Antes de partir ele queria sossegar o espírito da esposa.
Poti refletiu:
— As lágrimas da mulher amolecem o coração do guerreiro, como o orvalho da manhã amolece a terra.
— Meu irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver Iracema.
O cristão avançou. Poti mandou-lhe que esperasse; da aljava de setas que Iracema emplumara de penas vermelhas e
pretas, e suspendera aos ombros do esposo, tirou uma.
O chefe pitiguara vibrou o arco; a seta atravessou um goiamum que discorria pelas margens do lago, e só parou onde a
pluma não a deixou mais entrar.
Fincou o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada, e tornou para Coatiabo:
— Tu podes partir agora. Iracema seguirá teu rastro; chegando aqui, verá tua seta, e obedecerá à tua vontade.
Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partiu enfim
seguido por Poti.
Breve desapareceram os dois guerreiros entre as árvores. O calor do Sol já tinha secado seus passos na beira do lago.
Iracema inquieta veio pela várzea seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras doces vestiam os campos quando
ela chegou à beira do lago.
Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum trespassado, o ramo partido, e encheram-se de pranto.
— Ele manda que Iracema ande para trás, como o goiamum, e guarde sua lembrança, como o maracujá guarda sua flor
todo o tempo, até morrer.
A filha dos tabajaras retraiu os passos lentamente, sem volver o corpo, nem tirar os olhos da seta de seu esposo, e tornou
à cabana. Aí sentada à soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que o sono acalentou a dor em seu peito.
Apenas alvorou o dia, ela moveu o passo rápido a lagoa, e chegou à margem. A flecha lá estava como na véspera: o
esposo não tinha voltado.
Desde então à hora do banho, em vez de buscar a lagoa da beleza, onde outrora tanto gostara de nadar, caminhava para
aquela, que vira seu esposo abandoná-la. Sentava junto à flecha, até que descia a noite; então se recolhia à cabana.
Tão rápida partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da
Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio, chamavam aquele sítio da Mocejana, a
abandonada.
Uma vez que a formosa filha de Araquém se lamentava à beira da lagoa da Mocejana, uma voz estridente gritou seu
nome do alto da carnaúba:
— Iracema!... Iracema!...
Ergueu ela os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda jandaia, que batia as asas e arrufava as penas com o prazer
de vê-la.
A lembrança da pátria, apagada pelo amor, ressurgiu em seu pensamento. Viu os formosos campos do Ipu; as encostas
da serra onde nascera, a cabana de Araquém; e teve saudades; mas ainda naquele instante, não se arrependeu de os ter
abandonado.
Seu lábio gazeou em canto. A jandaia, abrindo as asas, esvoaçou-lhe em torno e pousou no ombro. Alongando fagueira
o colo, com o negro bico alisou-lhe os cabelos e beliscou a boca vermelha como uma pitanga.
Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendo-a no tempo da felicidade; e agora ela vinha para
a consolar no tempo da desventura.
Nesta tarde não voltou só à cabana. Durante o dia seus dedos ágeis teceram o formoso uru de palha que forrou da felpa
macia da monguba para agasalhar sua companheira e amiga.
Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave não deixou mais sua senhora; ou porque depois
da longa ausência não se fartasse de a ver, ou porque adivinhasse que ela tinha necessidade de quem a acompanhasse em sua
triste solidão.

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