08 - Bloqueio

10 3 1
                                    


Quando começamos a sair com alguém, nós nos sentimos um tanto leves. Como uma sensação de prazer profundo e que nos concede uma felicidade anormal, ao menos costuma ser assim – tem quem não sinta isso. Enquanto os dias passam, as pessoas continuam a agir em seu dia-a-dia como sempre. Pais e filhos se encontram, discutem, se abraçam. Chefes e empregados entram em discussões, acordos, alguns são demitidos e outros abaixam a cabeça para o que acontece, mesmo que seja injusto.

Allan tinha encontrado em Rebecca uma amante insaciável e uma confidente curiosa. Discutiam sobre seus contos antigos, sobre seus planos futuros, mas, na maior parte do tempo, ficavam na cama como dois adolescentes sem supervisão adulta. Quando encontravam tempo para descansar, Allan sorria como um bobo apaixonado e Rebecca se aninhava em seu peito. Eles não conversavam mais, ficavam em silêncio, assistindo filmes pelo computador e pediam comida para entregar – Ela gostava de comida chinesa, ele preferia pizza, mas não discutia com ela.

Era quase final do ano, Allan deveria estar escrevendo, mas não o fazia. Ficava deitado quase o dia todo, só levantava para ir ao banheiro ou atender a porta quando a comida chegava. Rebecca, por outro lado, parecia sempre ativa. Mas ao contrário de Michelle, ela parecia sempre zangada com alguma coisa. Estava sempre reclamando da luz e de como precisava pintar, como encontrar um bom material de pintura era difícil naquela cidade, mesmo que fosse grande. Ela reclamava da falta de trabalho para artistas como ela, Allan a ouvia e, ocasionalmente, ligava para seu editor, perguntava sobre capas de livros, se precisavam de algum artista para uma nova, mas essas ligações pareciam cada vez mais raras.

Allan estava evitando seu editor mais uma vez. O natal estava chegando e a editora estava organizando uma antologia com contos especiais para o feriado, ele deveria abrir a antologia com algum conto de terror novo, mas ele não produzia. Não se importava mais tanto com escrever, estava enamorado e completamente extasiado.

Seu editor o visitara uma vez ou outra, no começo ele ria e dizia que finalmente tinha encontrado alguém para ajudar com seu stress, mas com o passar do tempo foi ficando mais e mais ranzinza. Allan trocou a fechadura do apartamento para que ele não entrasse mais sem avisar. Rebecca não parecia se importar com o editor, mesmo quando estava seminua na cama ou pelos cômodos do lugar. Ela parecia chamar a atenção dele.

— Olha, cara — ele disse uma vez, em uma ligação — você é um cara legal, mas precisa escrever, precisa trabalhar. Sei que o sexo deve ser muito bom, mas só isso não vai te manter. Você veio para trabalhar, não para transar com uma interesseira — o editor já tinha entendido qual era a de Rebecca. Todos já tinham entendido qual era a dela, menos Allan — Você precisa, pelo menos, aparecer na festa de natal. Escreva qualquer coisa, faça por merecer esses cheques que te mandamos. Apareça ou seu contrato vai ser rasgado e você vai ter que voltar para a cidade de onde veio.

Era um ultimato.

Allan desligou o telefone e olhou para o lado, Rebecca dormia pesadamente na cama, as tatuagens cobriam seu corpo nu. Ele olhou para o computador sobre a mesa, se levantou e, depois de um banho e de preparar uma xícara de café, ele se sentou. Abriu o editor de texto e ficou encarando a página em branco, a xícara segura entre as mãos, a fumaça quente subia pelo rosto e o cheiro da bebida o embriagava.

Ponto.

Ponto.

Ponto.

Ele não sabia o que dizer. Não sabia o que escrever ali, não tinha ideia do que poderia contar. Suspirou. Tomou um longo gole do café, queimando a língua, colocou a xícara na mesa e jogou os braços para cima. Estava ficando zangado, estava concentrado... Ou não estava? Por que era tão difícil encontrar alguma coisa para contar? O que estava diferente dessa vez? Não estava cansado e nem estressado, isso com toda certeza não estava. Ele coçou a cabeça. Olhou para a mulher em sua cama, ela continuava babando em seu travesseiro, agarrada ao outro, como se fosse ele ali.

Seus olhos correram pelo quarto, caindo sobre o bloco de papel da pintora. Desenhos. Isso! Algum dos desenhos dela poderia inspirá-lo. Ele poderia... Em branco. Folheando página por página percebeu que o bloco estava em branco. Era novo, claro, tinham comprado no dia anterior. Ela tinha recebido uma proposta para fazer uma capa nova para um livro da editora – um trabalho que ele tinha arranjado para ela com muito custo.

— Merda — murmurou enquanto escrevia a palavra repetidamente no arquivo aberto — O que eu faço?

Estava em uma boa vida, tinha lançado o livro novo há pouco tempo – dois meses, no dia das bruxas – e agora não conseguia fazer um simples conto? Seria o sexo em excesso que o privava de pensamentos? Teria relaxado demais? Para onde tinham ido parar as ideias? Onde estava o caderno de anotações?

"É claro!", pensou. Ele tinha ainda o caderno de anotações de quando Michelle o ajudava, de antes de lançar o livro novo. Alguma ideia tinha que estar perdida naquelas páginas, alguma boa ideia que ele ainda não tinha usado tinha que estar ali, ele precisava de uma ideia urgentemente. Tinha que mostrar serviço, não podia deixar as coisas ruírem assim tão rápido.

Ele precisou revirar o apartamento todo, mas conseguiu encontrar. Folheou algumas páginas até encontrar uma frase que não tinha usado, uma longline que tinha anotado e não tinha usado.

"Um homem é acordado pela esposa que ouviu um barulho na sala... Ela já estava morta há dois anos", perfeito. Só precisava adaptar para o feriado. Estava resolvido. Sentou-se mais uma vez para escrever, olhou para Rebecca na cama antes de começar a digitar. Ela acordara, sorria para ele e o chamava para cama.

Ele foi.

Musas - A arte de amarOnde as histórias ganham vida. Descobre agora