O Abismo

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A floresta era uma massa negra indistinta. A cada passo, a menina ensaguentada sentia que andava em círculos, como se estivesse em um quarto escuro sem paredes, portas ou janelas. Tentava desesperadamente puxar o ar para os pequenos pulmões que pareciam queimar a cada lufada de vento frio. Uma sensação de angústia se espraiava por cada milímetro de sua esperança de encontrar um mínimo ponto de luz que lhe indicaria uma saída. O medo se tornara tão palpável, como uma presença fria serpenteando o ar denso, não havia para onde ir, poderia estar andando em círculos, ou ainda pior, poderia estar indo para o lado errado, em direção ao homem que a caçava por entre as árvores, o homem que a machucara cruelmente em seu divertimento doentio.

Assim como as trevas que pareciam uma imensa extensão de sua mente naquele momento, seu corpo também se tornara uma massa informe. Mal sentia suas pernas, era como se flutuasse. Seus olhos ardiam, as lágrimas quentes secavam rapidamente como o sangue coagulado nas bochechas. As palavras "Continue correndo!", continuavam a ecoar dentro de sua cabeça sem parar.

Seus pés descalços estavam em carne viva, como se milhares de agulhas perfurassem a carne, pedras, galhos, cascalhos, invadiam a laceração e cavavam ainda mais fundo nos ferimentos que descosturavam a pele enlameada. A menina ensaguentada sentia gotículas de chuva em seu rosto, a terra se movia sob seus pés. Seu coração tiquetaqueava com violência, produzindo pequenas explosões subterrâneas sob seus tímpanos. Outros sons abafavam o desesperador tique taque do músculo sob a caixa de carne e ossos. Galhos quebrando, sua respiração se esvaindo de seus pulmões, que se assemelhava a um chiado enfisêmico. A chuva fina que caía sobre o telhado de folhas das árvores, e outros sons indistinguíveis e invisíveis da natureza que a observava por entre as sombras.

Tinha a impressão de ter ouvido a respiração do homem que a perseguia, sua voz grave, como a de um animal enfurecido uivando seu nome na escuridão. Podia sentir sua presença e o cheiro podre de seu hálito.

"Continue a correr!" De alguma maneira sabia que, se parasse, estava tudo acabado. A menina coberta de sangue continuava a correr pela noite que parecia não ter fim.

As poças de lama se repetiam pelo caminho às cegas, assim como os arbustos espinhentos. As mordidas de dor voltavam a açoitar suas pernas que tremulavam e formigavam. Nas solas esfoladas de seus pés o sangue fundia-se a lama e grudava, formando uma crosta deslizante que entrava como sal nas feridas e a faziam perder o equilíbrio. A sensação de angústia parecia fazer seu corpo pesar como chumbo, seus pensamentos se fundiam em uma massa cinzenta, seu corpo tremia: a menina ensanguentada estava em estado de choque. "Continue correndo!" dizia a voz, mas esta já vinha de longe.

Instintivamente olhava para trás rapidamente, mas tudo que via era escuridão. "Não... Não caia!", a voz sumia sob o som da chuva que se intensificava. Tentava desesperadamente não perder o equilíbrio. Estava esgotada, e a cada uivo do vento frio de outono que soprava, sentia um cheiro acre de um hálito amornado, de cheiro azedo e alcalino, do homem que se fundia a escuridão. Uma chuva caía sobre seu corpo ensanguentado, lavando o suor emplastrado e sangue ressecado que cobria boa parte de seu vestido rasgado, preso por uma das alças. O líquido de cheiro doce e enjoativo escorria de sua testa, pescoço, braços e em maior quantidade, entre suas pernas.

As gotas de água invadiam sua boca enquanto tentava respirar, machucando sua garganta ressecada, assim como seus lábios cortados, sentia o gosto de ferrugem do sangue. Seus pulsos ardiam, estavam em carne viva. Das amarras, pequenas feridas disformes se formaram em volta da pele pálida, o sangue que escorrera em filetes pelas palmas das mãos, como óleo quente, agora pareciam calda de açúcar se desfazendo na água por entre os dedos pequenos.

Faíscas multicoloridas explodiam diante de seus olhos, um calor ardente se abria na região pélvica, como se estivesse sendo aberta de dentro para fora, com um maçarico. Seus quadris estavam doloridos. O medo era a chama incandescente acesa dentro de seu corpo, era a sensação eletrificada que corria sua pele. A menina implorava para que seu pai ou sua mãe surgissem de algum lugar para salvá-la. Eles a amavam e não deixariam nada de mal acontecer, era o que sempre prometiam. Embora às vezes falhassem. Mas a cada passo, seu corpo se tornava mais pesado, e o caminho rumo a lugar algum, se tornava ainda maior, inalcançável. Porque eles não apareciam?

Perdera o equilíbrio. Uma mordida quente de dor na panturrilha. Uma onda de formigamento invadira suas pernas, o sangue circulando loucamente sem rumo, dentro das veias. Tinha a sensação de que havia milhares de abelhas a ferroando por baixo da pele. E tudo girava, estava flutuando novamente. A menina gritou, mas sua razão que nadava naquela sensação espessa de levitação reagiu. Pensou em silenciar a dor, tapando a boca com a palma da mão suja de terra. Seu corpo inteiro parecia estar em chamas. Tentou pôr-se de pé, mas não conseguiu reerguer-se na primeira tentativa, nem na segunda, bateu pesadamente a testa sobre pedras invisíveis no chão coberto de terra molhada. A chuva caia furiosa, como gotas de chumbo sobre sua pele. "Não faça barulho!" disse a voz distante dentro de sua cabeça, enquanto se contorcia de dor.

A vertigem a puxava para todos os lados, as faíscas explodiam novamente, chamou pelo pai e pela mãe, saindo de sua garganta não mais que um sussurro, dizendo que estava com medo, a voz vinda das profundezas, quase inaudível.

De repente sentia sono, suas pálpebras pesavam.

Seria aquilo que chamavam de desmaio? O mesmo que acontecia com Candice, sua amiga da escola, que desmaiara nas arquibancadas, dado o calor.

Com a visão trêmula e diluída em uma escuridão turva, moveu-se para o lado. "Não durma!" E algo a puxou a atenção com uma força magnética invisível no meio da escuridão. Então, avistou uma luz. Por entre as árvores, há alguns metros, a luz de esperança se acendendo bem diante de seus grandes olhos aterrorizados. Apoiou-se sobre os cotovelos, joelhos, até conseguir se levantar. Só mais alguns passos. Pensou. Cambaleou para frente, a luz parecia caber em sua mão. Só mais alguns passos. Então de repente, uma pressão quente e aguda no alto de sua cabeça e seu corpo cedeu, uma queda livre, seus sentidos foram desligados rapidamente, seu corpo estava paralisado. Sentiu uma onda de calor, frio, e dor. Já não via mais nada, apenas ouvia ; era ele, o som de sua respiração. O som se distanciava. A menina agora estava vagando pelo vazio quando a escuridão a sugou para dentro de seu útero.

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