— Que lenda era aquela que ele falou?

Ela se virou para mim com pesar nos olhos.

— Essa é uma lenda que eu não pretendia contar, pois fala de dois irmãos caçadores...

Assenti, mas ela parecia não saber o que dizer, e, um pouco inquieta, começou a passar a mão nas pontas do cabelo comprido.

— Pode contar mesmo assim?

— Tem certeza que quer ouvir isso? Eu não queria te deixar mal ouvindo uma estória sobre a matança de sua espécie.

— Não tem problema, quero saber.

— Então tá... Mas vou contar a versão resumida. – Ela murmurou e ponderou por alguns momentos até começar. – Ambos eram muito próximos e estavam sempre juntos, e foi assim que aprenderam as técnicas da profissão; até que, um dia, eles brigaram. – Dessa vez, ela não quis deixar a estória mais interessante, foi direto ao ponto. – Nessa noite, foram atacados por um grupo de dragões. Para proteger a vida do irmão, o primogênito se fez de isca, atraindo a atenção do inimigo e dando tempo para o mais novo escapar por pouco. Claro que o caçador que sobreviveu quis vingança, procurando e perseguindo aquele dragão até matá-lo... Há variações, algumas estórias contam que o irmão que sobreviveu se tornou caçador só depois para se vingar e matar todos os dragões que encontrasse... Estórias desse tipo são comuns por toda a parte, encontramos tragédias por causa da guerra o tempo todo...

Fiquei em silêncio e ela não conseguiu dizer mais nada enquanto me observava. Não era apenas o lado dela que estava carregado de tragédias, de famílias separadas pela morte. Talvez, humanos e dragões não fossem tão diferentes assim, afinal.

— Você tem razão. – Quebrei o silêncio de forma inesperada.

— O quê? – A voz dela era suave e quase inaudível.

Aquele chato do Dragomir também tinha razão. Ele sabia disso e dizia a mesma coisa, ele via a realidade de um jeito diferente. Ele via com os olhos de quem queria ver a verdade, e não mascará-la com mensagens tendenciosas.

É fácil, mas tão fácil ficar com raiva e desejar vingança. Difícil era quebrar esse círculo, pois quando se entra nele, é como um abismo, lentamente nos tragando para baixo. Raleigh se afundou tanto que não sei mais se poderia subir, agora, eu finalmente consegui sair. Eu estava preso, até que pude ver uma prova de bondade e compaixão que foi o suficiente para me fazer desejar o mesmo e me lançar de volta para o céu.

— Nada de bom vai sair dessa guerra. Ódio gera mais ódio. Pensamentos vingativos atraem mais vingança. Eu não sabia disso na época, e não sei se você poderia compreender no mesmo nível de profundidade que eu. – Selene parecia confusa e na expectativa. Apoiei o cotovelo no joelho tentando me inclinar levemente mais perto. – Preciso de contar uma coisa, e entenderei se não me quiser mais por perto...

— Por que diz isso? É o quê?

Olhei pra baixo porque não conseguia encarar seus olhos.

— Eu já matei um humano por vingança. – Selene ficou calada, mas seu coração falava por ela, batendo e pulsando mais rápido. Não dava para ficar orgulhoso por deixá-la com medo, porém precisava admitir que fiquei aliviado por ela não se afastar de mim. – Eu tinha um irmão, ele era uma meia-noite mais velho do que eu.

— Uma meia-noite?

— Sim. Dragões como eu costumam nascer à meia-noite. O ovo dele rachou antes do meu. Como os irmãos da sua lenda, nós também estávamos sempre juntos, só que ele era mais inteligente e calmo do que eu. Ele entendia o verdadeiro problema da guerra, eu não. Uma noite, ajudei amigos a aniquilar uma vila cheia de caçadores, eu queria sangue e destruição, porém, se não fosse a intervenção dele, eu não teria saído vivo. Ele não queria lutar e tentou me convencer de todo a jeito a não ir, mas eu fui mesmo assim. Ele me protegeu e eu consegui escapar com vida, pensei que ele conseguiria fugir também... – Tentei sorrir para esconder a minha dor, tenho certeza de que falhei. – Eu briguei com ele, o desobedeci e disse que ele não sabia do que estava falando, que o certo era ir até lá e matar todos eles. Dragomir não concordava, porém foi por mim e morreu por minha estupidez. Eu fiquei solitário, com raiva, com ódio, e por isso, procurei o caçador que o matou para obter minha vingança... Só que depois que ele estava morto, não senti a satisfação que esperava e queria. Na verdade, senti um enorme vazio. Eu não poderia ter meu irmão de volta, sequer pude seguir a vontade que ele desejaria, a guerra trouxe apenas perdas e não foi só pra mim, pois vi que o inimigo não era tão diferente quanto eu imaginava. Fiquei apático, me sentia preso e nem a liberdade dos céus me fazia bem. Estava só esperando morrer, já não me importava mais continuar vivendo daquele jeito. Então, você me salvou, e percebi que você era diferente, que havia esperança.

– Esperança pra quê?

— Para mudar. Se alguém não der o primeiro passo para que isso acabe, essa desavença entre ambas as espécies não vai parar nunca. Dragomir acreditava que isso era possível, mas eu não. Isto é, até conhecer você.

Selene ainda estava um pouco nervosa, porém, ela conseguiu sorrir de uma forma reconfortante e quase incrédula.

— E você acha mesmo que eu, uma pessoa simples e comum, pode fazer alguma diferença no mundo? Não são todos que vão mudar de ideia por minha causa.

Consegui sorrir um pouco. Eu não era tão ingênuo assim.

— Certamente que não. Só que uma mudança assim não acontece do nada, tem que começar em algum lugar. Se a gente não fizer nossa parte, se não lutarmos pelo que acreditamos, ninguém mais o fará. Tentar fazer qualquer coisa é melhor e mais útil do que ficar sem fazer nada.

Selene continuava me observando, só que agora tinha uma ponta de admiração naquelas orbes castanhas. Ela não precisou dizer que concordava, e também não falou que me queria ir embora ou que estava com medo de mim. Na verdade, ela parecia até bem confortável quando caiu no sono pouco depois. Eu queria me manter acordado e alerta, contudo, em algum ponto da noite, senti a exaustão me atingir, e, de repente, estava sendo puxado para a inconsciência sem conseguir resistir.

Selene e o Dragão {Degustação}Where stories live. Discover now