Capítulo 1

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"O sol daquele dezesseis de agosto de 1781 era mais aguardado que os outros. Por um motivo simples. Naquela data nascia o pequeno e esperado Jorge. Domingos Teotônio Jorge, nascia num domingo de céu claro, após muitas horas, de um parto sofrido que varou a madrugada. O nome era uma homenagem ao seu bisavô, que a quase um século, lutara bravamente pela coroa portuguesa, quando esta interveio na conhecida Guerra dos Mascates, batalha travada entre os senhores de engenho de Olinda e os comerciantes portugueses em Recife. O pequeno Jorge nascia franzino e sua mãe mal podia acreditar que aquela criança serviria aos propósitos do pai, entrar para a guarda real. Mas essa era uma certeza que o velho Jorge tinha. Seu filho havia de pertencer ao exército e defender a coroa assim como ele e seu pai fizera.

Jorge nascera em família tradicional, filho e neto de militares que lutaram bravamente pela colônia a favor da coroa portuguesa. E assim deveria continuar sendo. Pelo menos, esse era o pensamento de seu pai ao pôr a criança nos braços, naquela fatídica manhã de domingo. E esse foi seu pensamento, quando aos 16 anos, enviou o rapaz a guarda real, afim de perpetuar a carreira que abrilhantava a tradição familiar e que seu pai tanto se orgulhava.

***

Jorge não era mais o garoto franzino que costumava ser. Do alto do seu um metro e oitenta, uma raridade em terras de portugueses baixinhos, ele sabia que esse seria seu destino desde menino. E não queria fugir dele, pelo contrário, queria servir ao seu povo. Sentia por sua terra um amor sem tamanho e uma necessidade de lhe ser útil. E era com orgulho que vestia pela primeira vez sua farda. Olhava-se no espelho roto que tinha em seu quarto, e pensava que já estava na hora de mandar trazer outro de Portugal. Aquele não aguentaria por muito tempo. A mãe orgulhosa, mas temerosa pelos constantes levantes e rebeliões que se faziam nos últimos tempos, olhava para o rapaz que se remexia em frente ao espelho tentando ver a própria imagem. Dona Ana sabia que a carreira de militar seria uma tarefa árdua, no entanto honrosa. E se a morte era certa a todos nós, que a de Jorge fosse nobre, por um ideal. Que fosse em defesa de sua gente.

– Dizem que a corte planeja mudar-se para o Brasil. – Comentou a mãe, sem dar muita importância ao que ela própria dizia. Jorge virou-se e dona Ana prosseguiu. – Muita coisa deve mudar por aqui. A família real há de trazer muitas melhorias para nossa terra.

– Acho improvável que isso aconteça, minha mãe. Imagine só... Uma corte inteira atravessando o Atlântico! Além do mais não temos estrutura para receber toda essa gente! Gente vinda da Europa, de costumes finos, no meio desse povo sem instrução, sem modos.

– É o que o povo fala... – Disse com certo desdém.

Jorge sorriu e beijou sua mãe na testa.

– Preciso sair, minha mãe. Sua benção.

– Que Deus, Nosso Senhor, te abençoe, meu filho.

Jorge estava enganado. Anos depois daquela conversa, a corte atravessou o oceano Atlântico e desembarcou na Bahia, seguindo para o Rio de Janeiro em seguida.

Com a chegada da família real ao Brasil, muita coisa mudara. A colônia respirava novos ares com as mudanças trazidas pela corte. Circulava em todo reino a Gazeta do Rio de Janeiro, periódico da corte, embora poucos fossem os que sabiam ler. Foram criadas escolas superiores, estradas, fábricas. E tudo no Brasil se modernizava afim de atender as necessidades e anseios das mais de quinze mil pessoas que formavam a corte portuguesa.

***

Era 1817. Jorge voltava para casa, tarde da noite, quando ao passar pela Rua das Cruzes, umas das estreitas ruas do Recife, ouviu gritos de socorro. Rapidamente, adentrou pela mal iluminada, estreita e enlameada rua, quando a viu pela primeira vez. Isabel era jogada de um lado para o outro por três homens completamente embriagados. Seu vestido longo e amarrotado se arrastava pelo chão e era muitas vezes pisado em sua bainha, ora pelos homens, ora por ela mesma, dificultando seu equilíbrio. No seu rosto, molhado pelas lágrimas que caiam silenciosamente e sem cessar, via-se um completo desespero. Os cabelos quase presos, desgrenhados e o vestido sujo de lama, deixavam claro para Jorge, que aquela cena não começara naquele instante.

– Ei! – Gritou, com a mão no seu alforje, pronto para usar a espada, presa em sua bainha.

Os homens pararam de empurrar a moça, que solta, perdeu o equilíbrio, caindo ao chão, sob a lama. Um deles fez menção de ir até Jorge, mas um outro lhe segurou pelo braço, vendo que o jovem militar estava armado. O terceiro sujeito olhou para Isabel, sentada ao chão de cabeça baixa e chamou os outros, se afastando, no entanto, sem dar as costas.

Jorge se aproximou da moça e estendeu-lhe a mão. Após alguns segundos de hesitação, ela segurou-se a mão do rapaz, de forma delicada. Jorge sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e calmamente a levantou, usando a outra mão para apoiar-lhe o corpo. Ainda sem olhar para o jovem militar, a moça agradeceu quase num sussurro.

– A senhorita está bem? Aqueles homens a machucaram? – A jovem balançou a cabeça, o medo refletido em seus olhos. – Onde moras? – Perguntou-lhe docemente, ao que obteve como resposta um simples apontar de dedos. – Vou acompanhá-la até lá, está bem? – Disse resoluto, soltando sua mão, tal atitude não era bem vista àquele tempo, e pôs-se ao seu lado numa caminhada silenciosa e no entanto, cheia de significados.

Jorge não conseguia imaginar o que acontecera. O que estaria fazendo aquela moça sozinha, tarde da noite em meio às ruas escuras e desertas do Recife? Não ousou perguntar. No entanto perguntou-lhe o nome. Isabel não respondeu. Perguntou uma segunda vez, achando que talvez ela não o tivesse ouvido. Ainda assim não obteve resposta. Então resolveu calar-se e em silêncio, acompanhar a moça, que apesar de suja de lama e completamente desgrenhada e trêmula, lhe parecera muito bonita.

Chegaram minutos depois em frente a uma casa e a jovem parou à porta. Jorge entendera que era ali que ela ficaria.

– Acho que nos despedimos aqui, então... – Disse-lhe. A moça continuava em silêncio. Jorge tentou olhar seu rosto, baixando um pouco a cabeça e tentando captar seu olhar. No entanto ela afastou-se de sua curiosidade, desviando os olhos e andando lentamente até a porta. Jorge permanecia parado enquanto ela se distanciava. E então Isabel voltou alguns passos até ele, em silêncio e com a cabeça baixa, fez uma rápida reverência.

– Obrigada, senhor.

Jorge sorriu, mas não teve tempo de lhe responder nada, pois ela rapidamente voltou-se até a porta de onde veio. Jorge começou a andar lentamente, pondo as mãos no bolso, quando ouviu uma voz suave e trêmula.

– Isabel, senhor. – Ele virou-se e, pela primeira vez naquela estranha noite, seus olhares se cruzaram. – Meu nome é Isabel.

O Filho de 1817Onde as histórias ganham vida. Descobre agora