Marina

9 0 0
                                    

"Alguma coisa no jeito que ela anda

Me atrai como nenhum outro amor..."

Enquanto George Harrison cantarolava na vitrola, Antônio, ainda alisando o dedo em que havia uma aliança até semanas atrás, debruçava-se na janela molhada pelo lado de fora e preenchida pela luz do dia sem sol. Do terceiro andar podia apenas avistar borrões que, antes da chuva cair, eram gigantescas construções no centro da cidade. Abandonou a cadeira e pôs-se de pé em frente ao quadro que pendurara dias antes.

Observava aquele quadro sentindo algo diferente. Era como na música. Havia algo que o atraía sem ao certo saber o que era. No quadro, uma senhorita ruiva, protegida por um chapéu grande adornado por babados e rendas, experimentava o cheiro de uma das margaridas brancas, envolvida pela plantação que brilhava sob um céu azul ensolarado. Sorria exibindo um sorriso sem qualquer preocupação, como se vivesse um grande amor. A aparência renascentista do quadro e o solo de guitarra da música escapando da vitrola o sugavam e o jogavam em um mundo onde só existia a artista que pintou e vendeu-lhe o quadro por módicos cento e trinta reais.

Era diferente...

Andando pela rua de cima do apartamento - caminho que sem nenhum motivo evitava - avistou a pequena exposição na calçada, a pequena moça de cabelos pretos e uma cômica boina de pintor agitando os braços e convocando as pessoas da rua para lhe comprarem seus quadros. Antônio imediatamente viu nela algo diferente. Foi até as obras penduradas no muro esquecendo que iria até a padaria da rua de cima. Eram todos magníficos, lembrando o estilo apurado de Michelangelo. Adicionou aquela habilidade à simpatia que logo sentiu pela jovem.

Ela o puxou pela manga da camisa e sorrindo muito fez uma propaganda de sua arte com muito bom humor. Era um sorriso encantador, com dentes grandes e muito brancos. Dizendo que gostaria de observar um pouco mais, ele notou o nome dela assinado em um canto de um dos quadros. Marina. Muito prazer, Marina, ele pensou.

Ela sabia vender quadros também, não apenas pintá-los. Depois de um elogio de Antônio, ela agradeceu sorrindo mais e fechando os punhos na cintura, como um super-herói na capa de um gibi. Que graça, Antônio pensou. Lembrou-se sem saber se era bom ou ruim que sua ex-esposa não tinha nenhuma das boas características de Marina. Em uma rápida conversa, incluindo a pergunta inocente sobre ser ela mesma a autora das obras, ele percebeu que não existiam tantas mulheres assim com as mesmas características dela. Ele encantou-se mais com Marina que com os quadros.

Queria levar o quadro com as margaridas e a ruiva de cabelos cacheados e longos. "Irlandesa no campo de flores" era o nome do quadro, segundo Marina. Sem se incomodar em pagar os cento e trinta reais, ele respondeu que a moça do quadro era linda e que os cabelos ruivos pareciam ter vida, embora ele preferisse cabelos pretos, como os da artista. Ela respondeu que não conseguia corar as bochechas, então ele não a veria com cara envergonhada. Ele notou as covinhas nas bochechas dela, redondas quando sorria, e sentiu vontade de mordê-las. Ele queria beijar Marina, abraçá-la...

Parecia abdução, hipnose, qualquer coisa não racionalmente plausível. Marina sabia desconcentrar sem precisar fazer muito, não apenas pintar e vender quadros. Ele quis saber se ela estava sempre por ali, pendurando seus quadros e usando artifícios inquestionáveis para vendê-los. Antônio, que sempre tentou ser desenhista mas jamais atingira um nível satisfatório, pôs o quadro no lugar onde uma foto grande de casamento repousara por anos, intrigado pelo talento de Marina.

Marina... Marina... Marina...

Ele a queria naquele momento. Seria maravilhoso tê-la em seus braços, abrigados sob um cobertor naquela tarde chuvosa. Via o rosto dela no lugar da ruiva do campo de flores, sentia o perfume dela sem o conhecer, lembrava dos seus trejeitos. Havia algo diferente, não era a mesma atração que sentia pelas outras.

Ela bateu a porta e ele abriu. Ela fechou o guarda-chuva tentando não encharcar o chão da sala e já se desculpando e sorrindo. Sobre a mesa de centro, um lanche preparado por ele a esperava. Enquanto comia o sanduíche e sorria após beber o suco de frutas amarelas, ele apenas se ocupava com os lábios e os dentes brancos dela, quase todos à mostra com as gargalhadas que faziam as covinhas aparecerem nas bochechas. Se o perguntassem depois como ela pintou o quadro da ruiva e as margaridas, ele não saberia dizer, pois se perdera na explicação.

A conduziu para a parede mergulhando uma mão entre os cabelos da nuca e a outra guiando a cintura. Ele a beijou quando ela sorria mordendo o lábio inferior. Tinha os lábios quentes e molhados e ele continuou a beijando assim, devagar, e sentindo o calor da boca dela. A livrou da blusinha que já mostrava os ombros e revelou os seios dela. Começou a beijar-lhe o pescoço e acariciar o seio direito, macio e rosado. Deu passos para trás, a puxando pela cintura sem desgrudar dela. Quando deitaram-se a cama sentiu o peso fazendo um crec. Isso a divertiu.

Marina jamais teria adentrado aquela porta se não tivesse notado em Antônio um jeito peculiar de homem que apreciava arte e ouvia Beatles quando estava triste ou alegre, comemorando ou tentando se acalmar para não atirar objetos na parede após seus dias não muito felizes trabalhando como gerente em uma metalúrgica. Ele penetrou Marina pela primeira vez quando o violino de Eleanor Rigby correu pelo apartamento. Era uma visão igualmente hipnótica observá-la sorrindo e movimentando os quadris, subindo e descendo. Ela cantava a música da vitrola e gritava, como se estivesse louca ou desvairada. O que diriam os vizinhos que havia semanas já reclamavam do barulho de guitarra da maldita vitrola e ameaçavam quebrá-la? Em nenhum momento em que Marina estava lá Antônio se lembrou deles. Não se lembrou de nada ao seu redor, era apenas a música e a pele dela transpirando e roçando a dele. Indo e voltando.

"Em algum lugar em seu sorriso, ela sabe

Que não preciso de nenhum outro amor"

Quando terminaram já estava escuro, quase onze horas da noite. Ela se vestiu e foi embora rápido demais, embora tivesse deixado muitos sorrisos na despedida para que Antônio se lembrasse horas depois.

Então ficou deitado na cama com a luz do quarto apagada mirando o quadro que recebia a luz do outro cômodo. Havia uma mulher ruiva sorrindo e cheirando uma margarida, mergulhada em milhares de outras margaridas... Margaridas... Marina... Ele ainda a sentia junto dele, os lábios quentes e macios e molhados dela lhe beijando e sorrindo ao mesmo tempo...

Não tinha o telefone dela. Quando pediu, ela preferiu anotar o endereço dele, garantindo que iria ao seu encontro. Ela cumpriu a promessa, mas o deixou sem nenhuma possibilidade de vê-la mais uma vez. Ele andou pela mesma calçada de trajeto atípico pelas duas semanas seguintes e Marina não reapareceu nenhum dia para expor seus quadros. E jamais retornou ao apartamento.

Então ele deliberadamente tirou a tarde de sábado para fazer planos (que jamais se realizariam) de como viveria com Marina. Resolveu acender um cigarro. O primeiro de sua vida. Enquanto a nicotina lhe invadia o sistema nervoso central, sonhou andar numa bicicleta antiga entre os campos de margaridas carregando a pintora na garupa (ela segurando o chapéu de renda para que não voasse e dando gargalhadas), como num filme italiano. Apanhou a garrafa de vinho tinto e despejou em um copo amassado de alumínio. Foi até a vitrola e colocou seu Abbey Road para tocar. Voltou a deitar-se na cama imaginando que a primeira música do disco seria boa para dançar junto com Marina. Ela sabia dançar? Em seus pensamentos, sim.

Não a veria nunca mais, ele aceitou. Mas ela deixara na sala dele uma lembrança que duraria para sempre. Ao menos quando ela ouvisse Beatles, em qualquer lugar que fosse, e ele tinha certeza disso, ela se lembraria dele e daquele anoitecer de dia chuvoso...

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Mar 22, 2017 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

MarinaWhere stories live. Discover now