Não eram sete horas da noite, e ela já estava se preparando para dormir. Colocou o pijama puído e bege e encostou a cabeça no travesseiro. Parecia que a única coisa que não lhe faltava nos últimos anos era o sono. Não se lembrava de quando foi a última vez que sonhara, por isso eu segurei minha caixa dourada e depositei-a em suas mãos.

As imagens lhe vinham como flashes. Observou-se com os cabelos loiros e radiantes, os olhos que brilhavam como duas esmeraldas – não aquele lodo opaco que as pessoas viam nos últimos tempos – e segurava as mãos do único homem que amara, com quem ao longo de cinquenta anos de casamento tivera cinco filhos e sobrevivera a tantas crises: financeiras, de saúde e emocionais. Eles se beijavam e era como se a cada toque, a vida ia preenchendo cada espaço vazio do seu corpo.

Vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto e molhando o travesseiro. Era possível enxergar em cada marca do seu rosto a história que ela contava, mas não tinha ninguém para conversar. Sobrevivera à guerra, às inundações e ventanias, às doenças... Só não sobreviveria ao inverno da alma – somente o meu beijo poderia salvá-la.

– Não lute... – Deslizei minhas mãos frias pelo rosto dela, limpando as lágrimas com os meus dedos.

Eu podia ver o medo em seus olhos.

– Eu estive lá quando seguraram o caixão do seu marido e o enterraram. Você desejou que tivessem jogado a terra sobre seu corpo com todo o seu coração, mas por fora precisou se fazer de forte para os filhos e amigos, pessoas que hoje não têm ideia de como você está sentindo. Veja bem, é muito fácil abrir mão das coisas que queremos. Dia após dia, ano após ano, você foi engolindo todos os sonhos que viraram cinzas, até que este dia finalmente chegou. Não me faça essa cara de espanto. Todo fim tem um começo e o seu foi construído tão bem, que meus esforços agora são mínimos.

Senti o coração dela se acelerando. Parecia que era parte do ser humano reclamar e pedir pelo fim das coisas, mas lutar com todas as forças com o que pediram.

Suas pupilas escureceram como uma noite sem lua; as mãos tremiam enquanto lutavam para se soltar de mim. Um grito ecoou pela casa, como o de um animal que levara um tiro.

Você sempre acha que está pronto, mas a verdade é que nunca está completamente. Já tive trabalhos mais difíceis do que esse. Ceifar vidas não é para qualquer um.

– Não importa o que dizem: não será como um descanso, tampouco um sonho... – sussurrei. Era essa razão que colocara todas as células dela em estado de agitação.

A porta da frente se abriu. Eu não tinha mais tempo. Precisava agir rápido.

– Dona Irene! – berrou o vizinho. – Você precisa de algo?

A senhora olhou para mim e abriu um sorriso. Senti um cheiro forte subindo por sua garganta e encarei os espaços escuros em sua boca, onde antes ficavam os seus dentes. Ela que odiava receber visitas inesperadas, parecia feliz com a presença do vizinho.

– Dona Irene... – sussurrou o homem, vendo minha sombra cobrir o corpo da senhora, como uma manta.

O homem se aproximou e via a mulher imóvel. Já estava com a mão no bolso, prestes a tirar o celular para ligar para a ambulância, quando escutou a voz dela:

– Só mais uma vez... Por favor...

Se ela via a decepção nos meus olhos ou se não se importava, eu não sabia. Mas alguém precisava pagar. Encostei meus lábios no dela e me afastei, observando a cena. Perdera a conta de quantas vezes ela tentara prolongar o inevitável. Era teimosa, como uma criança birrenta.

Ela segurou a mão do homem e ele se abaixou, como se ela fosse contar um segredo.

– Ainda não estou pronta... Me desculpe! – sussurrou ela.

Dona Irene puxou o rosto dele contra o seu e seus lábios se tocaram. Quando ele foi xingar, ela soprou uma fumaça roxa dentro de sua boca. Estava feito.

O homem caiu duro no chão. Ela piscara para mim.

Uma morte por outra. Antes de desaparecer, escutei-a telefonando para a emergência, com a voz desesperada e entre lágrimas, avisando que o vizinho acabara de apagar em seu quarto.

Foi assim, que nos despedimos. Até hoje aguardo o dia em que Dona Irene aceitará seu destino. Enquanto isso, ela continua fingindo que não me escuta e os vizinhos continuam desaparecendo. Afinal, alguém tem que morrer.

 Afinal, alguém tem que morrer

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