O Beijo

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 Sentada no chão do quarto como uma criança, ela folheava as cartas e fotografias amareladas pelo tempo

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Sentada no chão do quarto como uma criança, ela folheava as cartas e fotografias amareladas pelo tempo. Como as folhas que desprendiam das árvores e se arrastavam pela rua, ela chorava pelas coisas que se foram, torcendo pelo dia em que receberia o meu beijo agridoce e elétrico. Vinte e quatro horas até que nossos lábios se toquem, sussurrei em seu ouvido, mas ela não me escutou.

Era uma tarde de quarta-feira. O sol rasgava as nuvens com seus raios e queimava quem ousasse permanecer sob o céu aberto. Toda semana, naquele mesmo horário, ela subia na faixa da rua, na esperança de que um carro ou outro parasse para que ela pudesse atravessar e ia até o sacolão que ficava a algumas quadras de sua casa. Eu a observava e admirava como ela parecia tão destemida, diante da rapidez dos que passavam, sem medo de que alguém pudesse atropelá-la – ou quem sabe era o que ela desejava, mas se recusava a admitir em voz alta. Embora o tempo levara tudo dela, havia algo que a movimentava e sabia que se ela se permitisse parar, as coisas não fariam mais sentido. Os anos roubaram seus dentes, seus cabelos, seus amores, seus filhos, seus nomes... Recompensando-a com o vazio e a saudade.

Depois de voltar para casa e descarregar as compras, ela saiu com sua vassoura de palha e varreu a calçada, resmungando para si mesma da sujeira que parecia não ter fim. Seu corpo frágil, como o de um passarinho, com os braços finos, as omoplatas evidentes e a pele fina e enrugada se movia em um ritmo tão lento, que chamava a atenção dos passantes e motoristas. Sua imagem era como a de uma pintura cujas cores e contornos desvaneciam – o suficiente para fazer com que as pessoas desviassem o olhar após alguns segundos, pois se lembravam das coisas que ninguém queria pensar, como a velhice, o abandono, a doença e a morte.

As pessoas a olhavam como se fosse louca. A velha varreu a poeira durante minutos e depois retornara para casa. Alguns segundos depois, a calçada estava toda suja novamente. Segui seus passos lentamente, como se fosse sua própria sombra e observei-a trancando a porta. Ela colocou a cabeça na janela e deixou o olhar se perder no movimento da rua e logo fechou as cortinas.

Diante de sua própria solidão, ela abriu espaço para os pensamentos que gritavam em sua cabeça. As palavras ruíram pela garganta: "Todos os dias a mesma coisa". Pensava nos filhos que sempre prometiam visitá-la, mas nunca se lembravam nem mesmo de ligar; na comida que precisava preparar todos os dias e já não tinha o mesmo sabor que costumava ter; nos cabelos brancos que se acumulavam pelos cantos da casa, junto com toda a sujeira que o vento trazia; nos sonhos que não se realizaram e em tudo o que poderia ter feito e deixou para depois, mas agora sabia a verdade... o depois nunca chegaria.

Eu a escutei e a fitei durante horas. Primeiro, ela preparou a sua sopa de macarrões e legumes, em seguida, se sentou para comer, observando a novela da televisão com aqueles atores tão jovens e histórias tão banais que a deixava sonolenta. Desligou o aparelho e foi direto para o banho. Fazia algumas semanas que não assistia aos telejornais. Estava cansada de ver tantas notícias sobre desgraças, crimes e escândalos políticos que aconteciam pelo país. Pensei em avisá-la sobre a previsão do tempo, mas guardei para mim. Qualquer surpresa era melhor do que nenhuma. Promessa é promessa. Quando decidi que estava na hora de entregar o seu presente, eu sabia que não poderia mais voltar atrás.

O BeijoWhere stories live. Discover now