Paixão ardente

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A navegação até Situr foi muito tranquila. Chegaram no local no meio da tarde. A vila era toda cercada por um muro alto de madeira, com torres de observação aqui e ali. Aquilo era suficiente para manter fora zumbis e outras criaturas da noite. Cavaleiros formados na academia e capazes de espantar maus espíritos faziam sempre parte da ronda noturna. Problemas surgiam, mas não eram frequentes.

O trio desembarcou no cais da vila, que ficava morro abaixo, cerca de um quilômetro longe da muralha. Dali seguiram a estradinha sinuosa morro acima. A vila era pequena, talvez do tamanho do bairro das espadas. Em seu interior, as construções que se destacavam eram o velho templo, misto de alvenaria e madeira e o casarão fortificado no qual o conselho local se reunia. O templo ficava no alto de uma colina e abaixo dele, um bairro com casebres.

Para variar, Hégio falava quase o tempo todo. Yaren falava também um pouco, mas a Capitã não teria falado três frases completas desde que deixaram Kamanesh. Hégio não parava de falar na tal Taverna do Barão Ausente. As estórias do jovem Barão Calisto de Wuri ainda eram famosas naquela região. Situr, durante pouco mais que um ano, havia se tornado parte de um minúsculo baronato cujo suserano era o velho Duque de Kamanesh.

Com Situr havia sido o principal porto da região e era lugar de passagem duas famílias que viviam no centro da vila desmancharam duas casas e construíram no lugar uma grande estalagem que podia receber mais de cem hóspedes. Tudo isso ocorreu no período do baronato, havia mais dinheiro entrando e uma sensação de prosperidade que durou algum tempo, mas conforme não se teve notícias do barão por anos, a região voltou a ser administrada por Kamanesh.

O tal Barão Calisto era de algum modo uma figura admirada na região. A estátua do Barão, que ficava numa praça de Situr, e que o duque mandou derrubar, na verdade foi retirada e levada para a taverna. Yaren e a Capitã observaram a estátua por algum tempo quando ali entraram. O salão comunal era amplo e havia dezenas de mesas. Não estava cheio àquela hora, mas certamente havia freguesia.

Hégio foi logo falando com pessoas aqui e ali e cumprimentou um dos donos do local com um abraço. Eles cochicharam bastante entre si enquanto a Capitã e Yaren foram ver mais de perto aquela estátua. O barão desaparecido fora retratado como uma rapaz franzino, um pouco mais baixo que Yaren, mas com uma expressão severa e que dava um pouco de medo. O interior dos olhos era uma das partes da estátua que haviam recebido pintura. Olhos pintados de preto. A Capitã estremeceu. Ele e ela tinham aquilo em comum, mas em seu caso, quase ninguém sabia. Outrora em Lacoresh, pessoas com os Olhos de Eclipse eram bem vistas e até bajuladas. Ela se lembrava vagamente daquela sensação do seus tempos de infância. Como era enfeitada para ser levada aos cultos na igreja, várias vezes por semana. As pessoas ofereciam coisas à sua família, comida, animais e até moedas. Ela ganhava flores, brinquedinhos de madeira, bonecas. De repente doeu lembrar-se de tudo aquilo. Ela fungou por causa das lágrimas.

— Você está bem, Capitã? — indagou Yaren prestativo.

— É só um resfriado.

Ela se afastou da estátua e viu Hégio acenando para ela.

— Vão nos servir o jantar lá em cima.

Parte do grande salão era cercado por um amplo mezanino. Mesas e cadeiras melhores ficavam lá em cima. Havia uma mesa especial, com uma cadeira alta e acolchoada, meio velha, mas ainda bonita. Era ali que Calisto era servido quando vinha a Situr e se hospedava ali.

Hégio fez um gesto exagerado indicando o assento luxuoso — Senhorita, sente-se, por favor.

— Aqui? Tem certeza?

— Absoluta! — ele sorriu, uma daqueles seus sorrisos corretos e cheios de encanto. Por mais que ela tentasse resistir, era envolvida cada vez mais pelo charme e insistência daquele misterioso viajante.

Herdeiros de KamaneshOnde as histórias ganham vida. Descobre agora