Enquanto ainda havia luz, Yaren ficou no pátio observando Hégio dando lições ao menino. O homem tinha jeito com crianças, ele ponderou. Ou melhor, jeito com as pessoas em geral, mas ao mesmo tempo, algo o incomodava. Sentia por vezes algo de sombrio no olhar dele e imaginava o que poderia ser. Fora isto, estava tudo muito quieto. O ex monge se assustou quando ouviu um berro vindo da casa.

— Sai da minha cozinha, velho peidorreiro!

— Ora Orzina, estou com fome. — o homem retrucou, mais baixo.

— Que os demônios carreguem sua fome, saia... daqui... já!

Hégio e Titi caíram na gargalhada, mas Yaren estava alarmado demais para achar graça.

Hégio contou muitos casos durante o jantar, poderiam bem ser estórias para assustar crianças, mas infelizmente, eram todos casos reais. A velha também gostava de contar os seus. E os dela eram ainda mais medonhos do que os do guia. O guizado que comiam tinha arroz, (pouca) carne de duritins e muita cebola. Era saboroso e foi servido com pão duro. Yaren separou as patinhas e pedaços de cauda que encontrou no seu prato, mas observou que o menino e Hégio mastigavam aquelas partes até triturá-las.

— Desperdiçar é feio, padreco. — acusou Greyhill.

Yaren ficou sem graça, mas mesmo assim não quis comer aquilo. A verdade é que tinha dificuldade de comer carne, quanto mais quando os pedaços lembravam que aquilo fora uma criatura viva.

— Titi, já pra cama! Amanhã há muito trabalho a fazer.

— Mas vó...

— Mas nada, agora, ou... — ela nem precisou concluir para que o garoto saísse correndo para seu quarto.

— Vocês dois, boa noite. Há chá e cerveja ali, caso queiram mais.

— Obrigado, Dona Orzina. O guizado estava ótimo.

A velha acenou com a mão como se recusasse o elogio e saiu. O velho também saiu dali como chegou, sem dizer uma palavra.

— Ele não fala muito. — observou Yaren.

— Ele não gosta de estranhos.

Houve silêncio. Lá fora ventava muito e soaram gritos ou uivos distantes. Yaren dizia para si mesmo que os barulhos eram apenas um efeito do vento. Estava escuro ali, pois havia apenas a luz de duas velas. Uma sobre a mesa e outra sobre o balcão.

— Mais uma cerveja? — o guia ofereceu.

— Não, obrigado.

Hégio encheu seu caneco e voltou a se sentar.

— Então, você estava ajudando a Capitã a investigar os assassinatos. O que descobriram?

Yaren comprimiu os lábios. Havia visto muito sangue naquele dia. A imagem do cavaleiro deitado na cama com o lençol todo vermelho voltou à sua memória. E também o Yrquoniano que Hégio havia executado.

— Não muito, mas o cavaleiro Nathannis vinha investigando a possibilidade de haver um demônio infiltrado no palácio.

— Você acha possível?

Yaren deu com os ombros. — Não entendo muito sobre demônios.

— Afinal, para que servem monges se nem entendem de demônios?

— Muitos de meus colegas entendiam, mas eu me voltei para outros conhecimentos.

— Como o que?

— O conhecimento que brota de dentro quando silenciamos. Foi assim que descobri sobre o Deus uno e sua bondade infinita.

Hégio esboçou um sorriso sarcástico. — Se deus é tão bom, por que permite a atuação de assassinos, a existência de demônios e mortos-vivos? Que pessoas mentirosas tirem proveito dos crédulos?

— Se Deus interferisse na liberdade dos seres de agir, tudo sucumbiria à morte e inanição. Não teríamos vontade alguma para fazer qualquer coisa que fosse. Nada aconteceria. Não aprenderíamos.

— Aprender... a única coisa que aprendi é que não há essa coisa de bondade nos homens, ou qualquer outro ser inteligente. Os silfos, anões e outros são seres mesquinhos e que buscam apenas o benefício próprio.

— É? Então por que veio me ajudar?

— Tenho meus motivos, mas não me arrisquei assim porque sou bonzinho. E nem vim respondendo a um chamado divino. Suas noções de divindade ainda são mais malucas do que as da igreja.

— O que Deus quer de nós e que aprendamos. Cada ação, boa ou ruim, que realizamos tem consequências e algo a nos ensinar, basta ter olhos para ver. Deus criou os seres com esse propósito e não para serem escravos sem a escolha de como agir.

— Pois eu digo que esse seu deus é um tolo, ou melhor, um filho da puta. — Hégio retrucou com amargura.

— Há muita coisa boa em você, Hégio, mas vejo que carrega uma grande mágoa.

Hégio ficou quieto. Evitava pensar em determinados assuntos, mas aquela conversa com o monge o fez pensar naquilo que procurava evitar. Sua expressão endureceu e mordeu os dentes com força.

— Eu sou um bom ouvinte, se quiser dizer alguma coisa...

— Ouça isto: durma bem.

Levantou-se e pegou uma das velas para levar ao quarto. Yaren ficou calado observando-o. Estava certo quanto aquilo. O guia carregava algum fardo pesado dentro de si. O que seria?

— Amanhã vou te levar de volta à cidade. Sairemos cedo.

Yaren orou, juntou os pratos, pegou a vela e foi à cozinha limpar toda a sujeira. Ficou naquilo por algum tempo. Meditava enquanto executava seu trabalho até se se assustou ao ouvir um ruído. A velha Orzina surgiu entrou ali trazendo sua vela.

— Não tem sono? — ela indagou.

— Estava pensando... Conhece Hégio há muito tempo, Dona Orzina?

Ela anuiu com um aceno.

— Obrigada por limpar tudo isso para mim. Não é serviço de homem, sabia?

— Por nada. Fico contente em poder ajudar com algo.

Houve silêncio e Yaren voltou a falar.

— Eu o conheço a pouco tempo. Mas percebi que há algo que o perturba muito.

— O Heginho nem sempre foi um viajante. Há muitos anos, fora uma pessoa de família. Mas como muitos desafortunados, perdeu tudo. É um bom rapaz, não pode culpá-lo por ter lá seus ressentimentos.

— Compreendo. Eu queria ajudá-lo, mas agora entendo que talvez isso não seja possível.

— Você era monge? Por que largou o ofício?

— Bem, eu não queria, mas fui expulso.

— Entendi — ela sorriu maliciosamente — foi uma mulher? Ou encrenca maior?

— Encrenca maior, eu suponho. Eu questionei alguns dogmas.

— Ah, você é dos meus. Odeio o fanatismo da religião. No fim, acho que foi isso que trouxe a ruína para Lacoresh.

— Sim, a senhora está certa. A questão é: como escapar da ruína?  

Herdeiros de KamaneshWhere stories live. Discover now