Yaren havia lido para a Capitã: "Estava no terceiro piso a procura de algum detalhe suspeito, como o que havia encontrado no dia anterior no Salão Azul. Foi quando escutei vozes discutindo na Sala de Mapas. Os conselheiros Yourdon e DeVance discutiam e não pude captar o assunto a princípio. Eu estava disposto a abordá-los, mas ao ouvir a palavra golpe decidi proceder com cautela e escutar mais. Infelizmente, não disseram nada que confirmasse alguma suspeita negativa. Yourdon parecia irritado e repetiu que Kamanesh estaria a salvo se o outro tivesse seguido suas instruções. Já DeVance estava relutante e o tom de voz deixava transparecer nervosismo. Temia que algo desse errado e disse que um desastre recairia sobre todos. Antes que pudessem prosseguir com aquela discussão uma terceira pessoa entrou na Sala de Mapas pelo outro lado e fez a discussão cessar. Ainda houve uma conversa num tom mais baixo antes que se fossem, mas não consegui captar o sentido".

A Capitã suspirou aliviada ao ver o cavaleiro Galdrik se aproximando. Ele era um homem maduro, bem apessoado, na faixa dos quarenta. Usava barba sempre bem aparada assim como os cabelos que eram loiros escuros. Os olhos eram cor de mel, grandes e expressivos.

— Uma perda terrível — ele disse assim que chegou. Todos concordaram com um aceno.

— Por favor, entre — indicou Kandel.

Todos entraram, exceto Yaren que ficou do lado de fora em oração. O quarto de Henyl era simples e pequeno. Ele jazia em sua cama, com os olhos arregalados e a boca aberta. Havia uma cadeira, cabides pendurados na parede com peças de roupa e uma pequena mesa com dois livros, papéis e um tinteiro. Um pouco de luz do sol já penetrava o interior por frestas nas janelas de madeira. Kandel examinou as janelas com cuidado e abriu-as para deixar a luz entrar. Ele explicou.

— O crime foi descoberto no final da madrugada, durante a troca de sentinelas. O rapaz que estava de serviço tinha que passar por aqui para ir até seu quarto, no andar inferior e achou estranho o fato da porta de Henyl estar aberta. O rapaz disse não ter tocado em nada, mas que notou o lençol manchado de sangue. Pela expressão imóvel do rosto, julgou-o morto e resolveu soar o alarma.

Com a luz do dia penetrando, Kandel e a Capitã, passaram a examinar todos os detalhes: Se havia algum rastro de sangue. Não. Se a porta fora arrombada. Não. Se havia sinais de luta. Não. Enquanto a dupla examinava esses detalhes em silênciom sem fazer comentários, Galdrik olhava nos olhos do defunto e tomava concentração. A causa da morte parecia ser um único golpe com uma lâmina contra o coração. O lençol branco apresentava uma mancha vermelha e um pequeno orifício que indicava o corte de uma lâmina pequena. Certamente algo como uma faca ou adaga, mas não uma espada ou espadim.

Galdrik engoliu seco, tomou coragem e aproximou-se da vítima. Uma de suas mãos estava manchada de sangue e sobre o peito, perto do local do corte, a outra pendia para fora da cama. Galdrik examinou-o de perto. Estava pálido e os lábios azulados. Um cheiro de morte invadiu suas narinas. Levou a mão esquerda cima da testa do defunto tocando a parte calva da cabeça. Ele estava frio.

O jii fluiu de sua mente para sua mão e por todo o corpo de Henyl e quando voltou, imagens atingiram-no. Seus olhos miravam o infinito e sua expressão dava a impressão de que não estava mais ali. Havia dor. Galdrik captou uma discussão. Aquele rosto era conhecido. Sim. Era o Conselheiro Ruy DeVance. Henyl estava cansado. Não, exausto. Galdrik percebeu que ele não tinha o costume de trancar seu quarto. Sentia-se seguro ali. Não havia motivos para trancar. O cavaleiro compreendeu que a porta destrancada havia tornado o trabalho do assassino mais fácil. Talvez até tivesse sido uma vítima por esta razão. Talvez não.

Tentou obter a última imagem de mente de Henyl, mas estava escuro. Ele chegou a ver seu assassino, mas não pode distinguir mais que uma silhueta contra a escuridão do quarto. Com a mão direita, puxou o lençol empapuçado de sangue e revelou o peito nu, coberto por pelos grisalhos. Tocou o local do corte com o dedo indicador. O jii fluiu e ele viu a imagem de uma adaga. Não era qualquer adaga. Era bonita, antiga e tinha o brasão do Duque. O velho símbolo do ducado de Kamanesh e não o novo brasão do Reino de Kamanesh. Muitas vezes o velho duque presenteava jovens com aquela adaga. A memória de Galdrik voou longe para o passado. Lembrou-se da primeira vez que viu uma daquelas. A cerimônia de ordenação de cavaleiros, logo antes da guerra contra os bestiais, há cerca de vinte anos. O Kyle Blackwing havia recebido uma daquelas no lugar de seu pai, Armand Blackwing. Aquele nome de família agora era usado pelo grupo de elite da guarda real.

O suor escorreu pela testa de Galdrik. Fazia agora um esforço mais intenso para obter impressões daquele que havia segurado a adaga. Sentiu então uma pontada de dor e a confusão tomou conta de si. Imagens desconexas que não faziam muito sentido. Sim, ele percebeu. O atacante possuía defesas contra o jii. Pressionou mais um pouco, mas seu esforço foi em vão. A identidade do assassino estava protegida. No entanto, foi capaz de captar uma sensação, talvez uma emoção, um prazer. Sim, o prazer de fazer algo proibido. O prazer de se escamotear. O prazer de enganar a todos. Uma sensação poder e saber que não poderia ser apanhado. Mas não! Havia medo. Medo de ser apanhado. Aquilo não fazia sentido. Eram sensações contraditórias. Galdrik ponderou, no entanto, que não era raro encontrar na mente das pessoas conflitos assim. Paradoxos. Sentimentos opostos convivendo de algum modo. Uma nova onda o atingiu e viu uma mulher. Uma mulher que tinha um olhar maligno. Olhos negros. Olhos das crianças do eclipse. Era algo que não via há muitos anos. Mas nunca havia visto aquele rosto. Seria ela a assassina? Ou uma cúmplice?

Ele suspirou forte e arfou ao retirar as mãos do defunto e se afastar.

Explicou suas impressões aos presentes e ao final disto, a Capitã indagou.

— Encontrou algo que pudesse sugerir uma presença demoníaca?

Galdrik olhou para a Capitã e sem saber o porquê, sentiu um calafrio percorrer a espinha. Uma ideia estranha percorreu sua mente e num descuido, deixou aqueles pensamentos aflorarem.

A Capitã captou os pensamentos e sentiu-se enjoada. "Ele suspeita de mim?"

Galdrik se recompôs e indagou — Por que a pergunta, Capitã?

— Nathannis suspeitava de um demônio infiltrado.

— Sim, havia algo de maligno, mas não necessariamente um demônio.

Galdrik explicou um pouco do que viu. Kandel pensou sobre a discussão de Henyl com DeVance. Eles eram velhos amigos e Kandel nunca vira qualquer sinal de desavença entre os dois. Isto fazia que suas suspeitas de que uma conspiração estivesse em andamento crescessem. A posição de Kamanesh, sem o rei, era frágil. Lacoresh, Whiteleaf e até mesmo Homenase poderiam tentar alguma coisa. Não seria difícil arranjar correligionários para um golpe entre os políticos de Kamanesh.

— Mas pensa ser possível? — insistiu a Capitã.

Galdrik olhou para dentro de si. As percepções quanto ao assassino eram confusas, mas ele respondeu. — Sim, é possível. Acho que é algo que vale examinarmos mais a fundo. Talvez, se trouxermos Mestre Darnell...

— Sim, bem pensado. Pode cuidar disto?

Galdrik estava perturbado e exaurido. Ele concordou, mas pediu licença para tirar a manhã para repousar. A Capitã e Kandel concordaram. Então Galdrik se retirou. Suspirou aliviado ao sair do ambiente passando ao lado de Yaren.

Apesar de Kandel não crer naquilo, as anotações de Nathannis indicavam seis tipos de demônios que poderiam obter sucesso numa infiltração. Havia tomado algumas notas a respeito após uma visita à biblioteca em Clyderesh na manhã do dia que fora assassinado.

— E então — o conselheiro indagou. — demônio ou conspiradores?

A respiração da Capitã acelerou e não foi capaz de responder.

— Capitã? Está bem?

Ela se esforçou para tomar controle de si. Algo fez com que seus poderes mentais se ativassem. Os fluxos de jii percorreram sua mente e ela se viu na posição de assassina. Não fazia sentido, mas ela estava presa. A investigação mostrou que ela havia sido possuída por um demônio. Aguardava julgamento, mas logo que todos descobriram seu segredo, que era uma criança de olhos do eclipse, só havia uma coisa a fazer. Ela seria executada. As crianças do eclipse foram preparadas pelos necromantes para abrigar demônios. Todas haviam sucumbido àquele destino. Os registros indicam que vários casos de possessão.

— Não pode ser verdade! — ela gritou em resposta.

— O que houve, Capitã? — Kandel tinha o intuito de tocá-la, mas recebeu uma cotovelada e ela correu para fora dali.

Kandel fez uma careta e gritou — Capitã! Volte aqui!

Ela o ignorou, zuniu pelo corredor, mas foi seguida por Yaren.

— O que houve, Capitã? Espere!

Herdeiros de KamaneshWhere stories live. Discover now